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Antonio Candido ou uma vocação para a dignidade
PublishNews, Suzana Vargas, 07/01/2022
Em novo artigo para a sua coluna 'Escrever para lembrar: que os grandes escritores me ensinaram', Suzana Vargas se lembra das suas histórias com Antonio Candido

Em novo artigo para a sua coluna 'Escrever para lembrar: que os grandes escritores me ensinaram', Suzana Vargas se lembra das suas histórias com Antonio Candido | © André Gomes de Melo / Wikicommons
Em novo artigo para a sua coluna 'Escrever para lembrar: que os grandes escritores me ensinaram', Suzana Vargas se lembra das suas histórias com Antonio Candido | © André Gomes de Melo / Wikicommons
Uma carta: foi uma carta que me colocou em contato mais próximo com Antonio Candido, muito depois de conhecê-lo através dos livros. Com minha formação em Letras, era natural (senão essencial) que em minhas consultas e estudos acadêmicos me deparasse com sua Formação da literatura brasileira em dois grossos volumes. Natural e necessário que consultasse seus livros sempre que escrevia sobre literatura ou quando preparava minhas aulas na universidade. Mas, essas seriam palavras ao vento ou de ocasião, não fosse o modo como tive a alegria de conhecê-lo pessoalmente.

Como então o encontro aconteceu? Era o ano de 1995, eu trabalhava na Fundação Biblioteca Nacional, editando uma revista, mas atuando também no setor de projetos culturais. Coube a mim a tarefa de contatá-lo a propósito de uma exposição sobre sua vida e obra que a FBN tencionava organizar, numa homenagem devida "a quem tanto contribuiu para as Letras nacionais". Essas foram as palavras com as quais eu terminara a carta que lhe enviei sobre a mais do que justa homenagem.

A correspondência tinha a intenção não somente de comunicar sobre a exposição, mas de convidá-lo a vir ao Rio por ocasião da inauguração. Da minha parte, sentia grande responsabilidade pela incumbência do contato pois nunca havia organizado ou curado exposições e encarava tudo isso como uma verdadeira missão, no caso dele, muito especial.

A resposta a meu/nosso convite não tardou muito e chegou embalada numa letra miúda, caprichosamente desenhada, como só uma determinada geração de escritores teve a sorte de possuir. E Antonio Candido certamente pertencia a ela. Começava tratando-me por Dona Suzana, como aliás continuou fazendo mesmo depois de nos avistarmos pessoalmente.

Da minha parte – para além da Formação – era sua leitora dedicada, havia estudado muitos de seus livros e raramente o tinha visto na televisão. Os raros vídeos (YouTube e podcasts não existiam naquela época) que tive a oportunidade de assistir com ele me apresentavam um homem magro, calvo, algum bigode, olhos azuis, expressão serena, mesmo gentil, com palavras sempre simples e precisas quando necessitava explicar algum fenômeno literário ou não. Seus comentários críticos iluminavam caminhos bem diversos para a literatura que ele traduzia de modo sensibilíssimo e objetivo. Alçava os textos literários a voos interpretativos muito mais amplos num tempo, ainda, de amargos e alienantes estruturalismos.

Por tudo isso eu sabia que a carta que tinha em mãos, não era uma missiva qualquer. Mas quando abri, foi enorme a minha surpresa ao me deparar com a recusa mais elegante que eu havia recebido em todo tempo de trabalho no setor de projetos culturais. Na verdade, não estava preparada, nem a direção da FBN, creio, para uma recusa. Eu já tinha iniciado uma pesquisa diligente para a exposição no vasto acervo da Casa e encontrado algumas primeiras edições de livros preciosos, como O observador literário, de 1959, um exemplar inaugural de Tese e antítese, alguns de seus primeiros escritos para a imprensa (em 1956, ele idealizou o Suplemento Literário do Estado de São Paulo junto com Paulo Emílio Salles Gomes), bem como fotos, artigos soltos, ensaios. Esses elementos e muitos mais iriam compor o vasto mosaico de trabalhos prestados à nossa literatura por Antonio Candido.

Li e reli sua recusa por vários motivos que já veremos. Estava certa de seu acolhimento e aceitação. No meu autocentramento e (talvez) ingenuidade juvenis, achava que ter uma homenagem da magnitude pretendida deveria ser algo irrecusável, na medida em que se tivesse certeza do merecimento. E esse era indubitavelmente o caso do Mestre. Mas, ele gentilmente declinou da honraria logo no primeiro parágrafo, dizendo que “há exagero generoso, mas excessivo nas avaliações a meu respeito e todas as vezes que elas se concretizam em homenagens fico constrangido, pois não tenho vocação para a notoriedade”. Essas suas palavras.

Do “alto” dos meus 40 anos à época, e com alguma infantil pretensão de notoriedade, pareceu-me incrível que pessoas como ele fossem tão lúcidas e modestas. Mais adiante percebi, ou me disseram, que se tivesse convivido com o professor por algum tempo, talvez sua recusa não me espantasse tanto. Segundo soube, ele era mestre também em driblar situações como aquela. Seria muito mais fácil convidá-lo a dar uma aula gratuita e improvisada para estudantes. Homenagens não estavam no seu programa de vida, mas, sim, trabalho. O puro trabalho feito com honestidade e alegria.

E como reagi? Senti, num primeiro momento, como se tivesse fracassado na minha missão, ao mesmo tempo em que reconhecia o quanto de honradez e verdade aquele gesto encerrava. Tempos depois, convivendo com algumas personalidades artísticas pude avaliar melhor o acontecimento e descobri, diante de tantas manifestações egóicas que - se nosso trabalho tem algum mérito - esse mérito está diretamente relacionado a seus resultados, não a seu reconhecimento, seja em que nível for. Uma descoberta e tanto. Tratava-se mais de uma questão ética ou moral?, eu me perguntava, intrigada. Lembrei de D. Quixote, meu clássico preferido, e de algumas observações cruciais que W. H. Auden faz ao referir-se às questões éticas ou morais do trabalho artístico, utilizando o romance de Cervantes como exemplo. Diz ele a certa altura de seu ensaio A mão do Artista: “ A rigor, Quixote não almeja a fama por si só; almeja realizar um feito que faça jus à fama. Os resultados têm para ele uma importância secundária e se entrarem em conflito com sua vocação, não precisam ser sacrificados.” As palavras de Auden sobre o Cavaleiro da Triste Figura reconciliaram meu ser com a recusa do Mestre e encontravam explicação no campo da coerência com uma vida vocacionada ao trabalho. Daí sua “ falta de vocação para a notoriedade.”

Nossa história, no entanto, não terminaria aí pois sua breve carta se estendia além das suas justificativas e as palavras que seguiram têm a ver com nosso futuro contato pessoal. Explico: ele havia lido por aquela época uma resenha que eu escrevera sobre o romance Mina R, de Roberto Mello e Souza, seu irmão, e que fora publicada no Caderno Ideias do Jornal do Brasil. No corpo da carta manifestou desejo de me conhecer pessoalmente e pedia meu endereço para me enviar seu último livro. Claro está que não deixei a oportunidade passar e combinamos um encontro numa de suas vindas ao Rio, visitar sua filha que morava no Jardim Botânico.

E assim nos avistamos. Lembro-me que, no primeiro encontro, eu não sabia bem o que conversar com aquele gigante das letras, premiado tantas vezes nacional e internacionalmente, cuja obra crítica era e é essencial em qualquer debate literário. Mas, venci minha insegurança e compareci à sua casa numa tarde chuvosa.

Encontrei-o muito mais alto, magro e afável do que supunha, junto à Dona Gilda Melo e Souza, sua brilhante companheira de vida e de ofício. Conversamos trivialidades, inicialmente, depois falamos sobre alguns assuntos literários do momento e questões políticas também (afinal, eu estava na frente de um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e de um dos maiores defensores da nossa democracia). Falamos também rapidamente sobre a exposição abortada e ele me confessou que realmente era avesso a homenagens. “O importante, Dona Suzana, é ir fazendo as coisas e que o resultado seja bom para todos. Mas fiquei vaidosamente agradecido, a senhora pode crer”. Simples assim.

Em mais duas ocasiões estivemos juntos em São Paulo. Pensei em chamá-lo para inaugurar meu projeto das Rodas de Leitura que estreava no CCBB de lá, mas desisti. E mais uma vez surgiu Auden em meu socorro:

“Em sua condição mais valiosa, o homem público é aquele que se dedica a um objetivo social, à política, à ciência, à indústria, à arte etc. O objetivo localiza-se fora de si, mas a escolha do objetivo é determinada pelos talentos específicos com que a natureza o dotou e a prova de que escolheu acertadamente é o próprio sucesso terreno”

Eis.

* Reproduzo, para ilustrar essa matéria, a primeira parte de um ensaio magistral sobre Grande Sertão que está em Tese e Antítese (ainda publicado pela Cia Editora Nacional)


Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.

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