Diário de Sharjah. Dia 5: de jogador de fubeca ao negócio das arábias
PublishNews, Leonardo Garzaro*, 05/11/2021
Quem era eu, cuja maior glória literária foi a nota dez em redação na prova da quarta série da professora Marieliz, para assinar contratos de edição mundo afora?

Não consegui dormir direito, de tão animado. Eu sentia que ia acontecer. Quando me deitei, repensei as conversas e senti que estava muito próximo de fechar negócio, e com muitos editores diferentes. Com algum acabaria dando certo! Exportar literatura brasileira é um sonho tão antigo que, sentindo-o próximo, perdi o sono. Se nos primeiros dias as mesquitas me despertavam, chamando cedíssimo para a primeira oração, desta vez fui eu quem acordei às quatro e meia e fiquei esperando o som invadir o quarto para levantar. Bom dia!

Fiz uns alongamentos, falei com o pessoal no Brasil, esperei o café da manhã. Passados três minutos das seis entrei no restaurante e o buffet ainda não estava posto. Como estava com fome, fui me servindo assim mesmo. Estranhei ainda não estar tudo pronto, porque o serviço normalmente é impecável. Então descobri que na verdade eu estava meia hora adiantado. Mais uma vez, trabalhei minha fama de editor brasileiro boca nervosa, como dizem perto de casa.

Chegou o editor argentino Luciano Páez Souza, da Interzona Editora, e sentamos juntos. Confidenciei minha gafe, pegando os pães enquanto ainda montavam o buffet. Ele, magérrimo, me contou que uma vez foi numa churrascaria em Buenos Aires e comeu tanto, tanto, tanto que simplesmente pararam de servir, e depois ainda colocaram sua foto na porta do rodízio, onde ele ficou impedido de entrar por dois anos! Rimos e nos entendemos muito bem. Em seguida chegou o Gérman, editor argentino radicado no Equador, que explicou que, em árabe, seu nome significa algo como “estou com vontade de fumar”. Nunca se sabe! Entre latinoamericanos, metade é piada, metade é verdade.

O ônibus me levou para a feira e a primeira atividade foi uma fila, no melhor estilo fila de banco para pagar as contas, mas neste caso para recebermos um reembolso do teste PCR pago no Brasil. Aproveitei a meia hora de espera para revisar o miolo de um livro — vida de editor. Em seguida, uma palestra sobre o Africa Publishing Innovation Fund, mais um projeto legal financiado pelos Emirados Árabes.

Finalmente as reuniões começaram, e fui à mesa da editora inglesa, a Ayse Ozden, para fechar negócio. Em dez minutos, vendi dois autores nacionais para a editora londrina. Viva! Segui para a reunião com a Rose Mary Salum, e mais um negócio fechado, venda de mais um autor nacional, alta literatura. E quatro livros vendidos para o editor jordaniano Ahmed Zyoud. Seis vendas! E eu estaria contente com apenas uma! Quem já jogou pôquer sabe como é quando estamos quentes, quando as cartas boas apenas vem e tratamos de aproveitar. Como estava quente, ainda tentei bater o martelo com editores turcos, moçambicanos e mais uma mexicana, e chegou bem próximo. Acho que consigo finalizar amanhã!

Só queria contar para os amigos brasileiros da Rua do Sabão. E para minha mãe, claro! Bati em tantas portas para publicar literatura brasileira mundo afora, tantos e-mails nunca haviam sido respondidos, reuniões desmarcadas, e finalmente estava dando certo não para um, mas para todos os autores da Rua, para todos que acreditaram em trazer suas obras para uma pequena editora ao invés de serem mais um nas grandes. Estava dando certo! Claro, detalhes a serem formalizados, contratos a serem assinados, mas tudo ficou bem apalavrado.

No Brasil, todos dormiam. Eu só pensava no Oswald de Andrade, que, contando quando foi convidado para visitar o quarto da dançarina norte-americana Isadora Duncan, pensou “Quem era eu, o filho bem-educado de D. Inês, o rapaz que tinha família em Caxambu, o matriculado na Lógica do padre Sentroul e no Direito Romano do professor Porchat, para suportar aquele sopro de tempestade shakespeariana?”. De minha parte, pensava “quem era eu, que jogava fubeca na rua detrás da escola na vila Alice em Santo André, filho do seu Celso e da dona Deise, cujo maior prêmio literário foi a nota dez em redação na prova da quarta série da professora Marieliz para assinar contratos de edição mundo afora?”. Enfim, era eu.

O resto do dia foi visitar a House of Wisdom, uma biblioteca absolutamente fascinante, sobre a qual ainda vou escrever. E a Sharjah Book Authority, que é um incrível complexo dedicado aos livros, voltado a simplificar a vida de quem quer estabelecer uma editora aqui. E bater palmas para o incrível e merecidíssimo prêmio recebido pela Laura de Pietro, pelo brilhante trabalho na editora Tabla (sem nos esquecermos no tradutor: parabéns, Michel Sleiman). Porém, estava um pouco desconectado de tudo, como se posto numa irrealidade. Como tudo isso aconteceu enquanto os brasileiros dormiam, talvez fosse apenas um sonho.

Leonardo encontrou Talita Facchini, repórter do PN, na House of Wisdom, a gigante e novíssima biblioteca de Sharjah
Leonardo encontrou Talita Facchini, repórter do PN, na House of Wisdom, a gigante e novíssima biblioteca de Sharjah



* Leonardo Garzaro é jornalista, escritor e editor da Rua do Sabão. À parte isso, tem em si todos os sonhos do mundo.

[05/11/2021 09:14:34]