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Em Bangu, com João Antônio
PublishNews, Suzana Vargas, 21/09/2021
Na sexta crônica da série 'Escrever para lembrar: o que grandes escritores me ensinaram', Suzana Vargas se lembra de histórias vividas com o autor de 'Malagueta, Perus e Bacanaço'

Senti medo e apreensão pouco antes de entrar no auditório repleto das Rodas de Leitura, no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), para um encontro com leitores ao qual João Antônio não compareceria. A produção havia telefonado para sua casa (num tempo que ainda não conhecia celulares) e ainda continuava tentando, mas ele, misteriosamente, não atendia. Já passavam mais de 30 minutos do horário marcado para o início da sessão de leituras e comecei a ler seu texto para um público decepcionadamente educado. Achava estranho que ele não comparecesse a esse compromisso pois era um dos autores mais profissionais e responsáveis com os quais já havia tratado. Foi então que me lembrei do nosso último encontro na Biblioteca Popular de Bangu, 15 dias antes, aonde ele havia ido comigo participar de um projeto de leitura. Eu conhecia João Antônio pouco e bem. Por paradoxal que possa parecer, esse pouco está relacionado ao tempo de convivência com sua pessoa física que encontrei muitas vezes, casualmente, em lançamentos e palestras. Conhecer bem fica por conta da leitura atenta de sua obra, claro. Eu havia estado com ele um bom tempo naquela tarde e tínhamos combinado mais esse trabalho no CCBB. Lembrei que - pouco antes de entrarmos na pequena biblioteca de Bangu - ele havia me dito que talvez viajasse, mas que eu não precisava me preocupar: iria do Santos Dumont diretamente para o centro cultural. O que teria acontecido, então?

A ida a Bangu naquela tarde de outubro em 1996, inaugurou uma camaradagem entre nós que até então não havia, mas que lamentavelmente se encerraria naquela ocasião. Por que digo isso? Já veremos. João possuía uma obra premiadíssima, traduzidíssima e era uma das estrelas da nossa literatura, mas somente naquela tarde, de modo particular, pude conversar mais longamente com ele. Antes desse encontro eu havia ficado apreensiva, pois dele diziam que era reservado e na maior parte das vezes, irascível, com seu notório posicionamento ao lado dos excluídos, dos invisíveis, como hoje chamaríamos seus personagens. Naquela circunstância, e por essa ótica, eu seria uma professorinha pequeno burguesa tentando catequisar os populares para o livro através de projetos, o que não deixava de ser verdade. Esse receio desapareceu quando o encontrei pessoalmente no terminal Menezes Cortes para a longa viagem até o local onde ele faria sua leitura.

Baixinho, bigode farto e amarelado, cabelos crespos com cachos miudinhos e quase raspados, barriga proeminente (talvez pelo gosto das cervejas), fumando muito, bermudas e sandálias. Essa a imagem que me ficou desse primeiro e último encontro pessoal com nosso personagem. Por que primeiro e último? Também contarei adiante.

Havíamos chegado a Bangu com quase uma hora de antecipação e resolvi levá-lo a um botequim/bar nas cercanias para esperarmos à sombra, bebendo alguma coisa no calor quase infernal deste que é um dos bairros mais quentes do Rio. Enquanto bebíamos água com gás (seria cerveja, ele havia dito, se não houvesse a leitura pelo meio), conversamos. Aproveitei aqueles momentos para explorar literariamente o grande escritor que ele era com seus contos, quase reportagens íntimas de tipos brasileiros, encontrados no proletariado periférico de São Paulo e Rio de Janeiro onde João morava na Praça Serzedelo Correia.

Acostumada à leitura de seus textos surpreendentes, viscerais, eu tinha muitas curiosidades sobre a carpintaria de sua criação e aproveitei o fato de estarmos a sós naquele bar calorento para dar vazão a algumas questões. Questões simples tais como de que maneira nasciam seus personagens, tipos tão diferentes da vida que ele próprio levava? Como conseguia criá-los de forma tão verossímil em linguagem, ação, quase suspense e drama? Esses eram, para mim, grandes mistérios, já que não sou e nunca fui uma narradora. Na literatura brasileira da época, o regionalismo ainda vicejava com alguma força, com personagens populares, mas um pouco caricaturais, narrados em terceira pessoa, “de fora”. Faltava-lhes fluidez, realidade e um olhar mais natural para o mundo sem ser necessariamente naturalista. Me intrigava, sobretudo saber como João dava tanta coerência interna ao fluxo de consciência de um leão de chácara, por exemplo? A um guardador de carros? Você escreve, eu havia dito naquela tarde, entre um gole e outro de água, como se vivesse dentro deles.... Como é isso? Por que optou por esses tipos tão distantes da sua condição?

Naquele dia, João Antônio não parecia muito disposto a elucubrações mas respondeu, entre as baforadas de seu eterno cigarro. “Eu não opto por nada, Suzana. Já disse isso em algumas ocasiões. Um escritor não opta por A ou B, é atraído por eles e é escolhido por eles. E quando a gente se dá conta, lá estão. Escrever é uma questão de coração, bem além do intelecto”. Eu havia ficado confusa pois minhas ideias a respeito da ficção narrativa falavam mais em planejamento e construção. Mas ele continuou falando com uma incrível convicção. Convicção de quem já tinha 16 obras publicadas e reconhecidas e ouvi com algum espanto afirmativas como: “Escrever é amar. É só por isso que mantenho a coerência. Nenhuma pesquisa que faça com dados estatísticos me dá um personagem se ele não me entrar pela porta do coração, se ele não me obrigar a compreendê-lo”.

Contadas dessa forma, com sua entonação grave, às vezes galhofeira, as palavras de João Antônio poderiam parecer piegas a algum desavisado teórico, mas não a mim que conhecia a força de seus textos pouco ou nada umbilicais, a naturalidade dos espaços por onde as personagens deambulavam, o realismo, a crueza de suas falas e as circunstâncias por ele criados. João falava pelos marginalizados sem dó nem piedade, com a esperteza e a alegria próprias dos desprotegidos. Falava pelos malandros de dentro da malandragem, ou seja: com amor. Sem idílios ou idealizações.

Eu havia pensado muito naquela conversa desde que havíamos encontrado em Bangu. A que exatamente se referia ao falar em amor, logo ele que em 1986 tinha publicado um livro de contos com esse título terrivelmente belo: Abraçado ao meu rancor? Tudo o que eu havia lido em seus textos podia configurar-se também como revolta, ódio, desprezo para seus personagens tirados todos da marginália, que ele, João, ia buscar nas conversas de bar, nas praças, nas rodas de jogos, nos quartéis da polícia. Ele me fizera parar para pensar no que poderia ser periferia em literatura (termo hoje tão em voga). Sua resposta para minha pergunta falava de modo surpreendente em amor. O ódio e a raiva, todos nascidos do amor, quem sabe nascidos de sua infância no subúrbio paulista, enfrentando preconceitos e subempregos, de seu trabalho como repórter que – no dizer de Fausto Cunha - estabelece uma ligação direta e por vezes instantânea entre o leitor e os seres humanos que enfoca. Mais tarde, já dentro da biblioteca popular de Bangu, ele complementaria algumas das minhas interrogações: “escrevo de dentro para fora, com a mesma fidelidade que tenho para comigo”, dissera.

E que fidelidade seria essa? Não somente a de ler, mas de viver quase marginalmente como havia decidido, um dia, no final da década de 1960, após ter ganhado o Prêmio Jabuti com seu primeiro livro Malagueta, Perus e Bacanaço, absolutamente novo no cenário da época. Naquele momento, realizara uma mudança radical de vida. Largara o emprego formal, filho pequeno, separara-se e passara a viver de forma mais despojada, deixando para trás aquilo que uma certa classe mérdea (como dizia, brincando), valorizava. Havia muito dedicara-se apenas à escrita de seus livros, adotando um estilo mais próximo ao da marginalidade vivida por seus personagens.

Dessa mudança radical nascera todo seu trabalho, tornando-se uma espécie de intérprete do submundo carioca e paulista, dando-lhes contornos mais universais, como ele dissera naquela tarde já comodamente sentado na pequena biblioteca: “o universal não tem data, a base de tudo é o homem e seus problemas fundamentais (...) Quando o escritor sabe mover esses sentimentos, tanto faz um personagem andar num camelo, numa nave espacial ou a pé”. A plateia para a qual falara naquela tarde sufocante não era tão grande quanto a que eu desejaria para um autor como ele. Diferente daquelas mais de 150 pessoas que eu estava tendo de enfrentar no auditório do CCBB para explicar sua ausência ou atraso. Em Bangu, João lera um conto comovente A afinação da arte de chutar tampinhas em que o personagem, ao descrever sua obsessão por chutar tampinhas na rua, mistura magistralmente essa técnica de chute à técnica da própria criação de textos, onde o sentido da observação é que comanda tudo.

Daí a 15 dias teria de estar comigo novamente nas Rodas de Leitura, no Centro da cidade onde leria Guardador, outro conto retirado do livro com o mesmo nome e que vou postar mais adiante. Digo leria porque não apareceu. E eu me via naquele momento às voltas com desculpas indesculpáveis porque João não aparecia e, a bem da verdade, desapareceu. Desapareceu de nós, da vida como soube dois dias depois.

Eu havia ficado relativamente tranquila com sua falta de notícias, como disse lá atrás, era um homem cumpridor de seus compromissos. Só que a esse não compareceu. Esperei, quer dizer, esperamos eu e mais de uma centena de pessoas num auditório lotado como costumavam ser as Rodas. Liguei para sua casa algumas vezes e nada. Como não tinha a quem solicitar informações, já que ele vivia sozinho (seu filho Daniel morava fora do Brasil), tive ainda a esperança de um possível atraso e resolvi enfrentar o desafio de aparecer ali sem o escritor prometido.

Me enchi de coragem, entrei no auditório constrangida por sua ausência, pedi desculpas à plateia e solicitei que esperassem, pois, o avião que traria nosso convidado poderia ter atrasado. Comecei eu mesma a ler seu conto (era praxe os autores lerem seus próprios textos) cuidando a porta por onde ele entraria, mas não aconteceu.

Tentei ligar muitas e seguidas vezes para sua casa nas horas subsequentes e nada, a produção do projeto no outro dia enviou alguém, mas o interfone não atendia. Dois dias depois soube de sua morte pelo meu amigo Bráulio Tavares. Fora encontrado sem vida, em casa, talvez por exatos 15 dias. Não tínhamos e tínhamos uma intimidade completa. Não a ponto de frequentar sua casa pois ele era discretíssimo, tanto que não morreu. Desapareceu no horizonte das viagens sem volta, sumiu da vista, mas não da leitura atenta e continua presente como seus personagens que, infelizmente, só fazem aumentar na paisagem do Brasil atual. Morreu do coração, lugar de onde saiu sua literatura, como me confessara naquela tarde quente em Bangu. Simplesmente parou de viver como declarou certa vez: “...posso dizer que escrevo para não enlouquecer de vez. O remédio para viver é viver, disse o poeta. Também pode ser escrever, e também pode ser a leitura”.


Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.

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