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No quarto, com Mário Quintana
PublishNews, Suzana Vargas, 11/05/2021
No segundo capítulo da série 'Escrever para lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram', Suzana Vargas lembra de episódios marcantes vividos ao lado do poeta gaúcho

“Fere de leve a frase / E esquece / Nada convém que se repita / Somente em linguagem amorosa agrada / A mesma coisa cem mil vezes dita”.

Versos como esses de Mário Quintana ecoam na minha memória de profissional das letras, sempre que me lembro dele. Um mestre, um gigante, por muitos considerado apenas como um poeta emocionado. E digo isso porque com Mário acabei tendo um convívio mais próximo em visitas que fiz nos quartos de hotéis onde se hospedou desde sua saída do famoso Hotel Majestic, hoje Centro Cultural que leva seu nome. E como fui parar lá?

Nascido em Alegrete (RS) como eu, Mário foi amigo de um tio muito querido que nos apresentou. O pretexto? Entregar meu primeiro livro ao admirado amigo pois costumava passar minhas férias de verão em Porto Alegre. Fui apresentada ao poeta de forma pouco glamorosa: ele estava numa cama do hospital Moinhos de Vento, recuperando-se de uma operação de catarata. Eu levava, por óbvio, meu livro e fiquei igualmente sem fala vendo aquele poeta que mal podia abrir um dos sempre vivíssimos olhos azuis, sorrindo para nós. .

Durante minhas idas quase anuais a Porto Alegre, eu o visitei nos quartos dos hotéis onde morou, às vezes sozinha, às vezes acompanhada de minhas duas filhas ainda pequenas.

Entrava no pequeno apartamento onde se viam muitos livros, uma cama de casal, uma mesinha e duas cadeiras, um frigobar tendo em cima a bandeja com foto da belíssima Bruna Lombardi, boa poeta que Mário incentivou (injustiçada literariamente pela própria beleza) e por quem nutria uma deslavada paixão, além de uma foto/mural de Ava Gardner que lhe serviu de inspiração em muitos de seus escritos. Cigarros na mesinha de cabeceira, chinelos. Não eram visitas demoradas. Apesar da ansiedade que sempre me tomava, eu tinha o cuidado de não ficar por ali um tempo maior do que uma ou duas horas. Seja como for, ele nunca recusou essas visitas como poderia fazer quando eu telefonava para combinar datas e horários.

Aprendi muito nessas tardes. Nada que o poeta quisesse me ensinar deliberadamente. Ele era a gentileza em pessoa e conseguia quebrar minha timidez quando adentrava seu quarto de poucos móveis e uma bagunça infinita. Se ia com as meninas, ele oferecia biscoitinhos guardados numa lata em forma de coração. “Comam um pedaço do meu coração”, dizia, e elas se espalhavam pelo pouco espaço do quarto sem um milímetro de censura.

Seria retórico falar das aprendizagens, mas aprendi. Ele não gostava de fazer digressões sobre poesia. Detestava, aliás. E muito do que eu buscava como autora iniciante era isso: descobrir os segredos do ofício de poeta. Quase nunca consegui arrancar alguma coisa nesse sentido, mas o pouco que me disse em algumas ocasiões valeu para o resto da vida.

Um dia, entre conversas sobre o tempo ou sobre livros, obtive três indicações de poetas gaúchos: Carlos Nejar, Paulo Hecker Filho, Heitor Saldanha e os esquecidos como está escrito no rabisco original ao lado (indicações rabiscadas com sua caneta de tinta vermelha numa folha branca, agora vergonhosamente amarelada).

Mas, e os segredos da escrita? Um dia, de tanto eu insistir, me disse “tenta escrever como se o poema estivesse sendo escrito à medida da sua leitura”. Pensei muito sobre esse curioso conselho. Talvez estivesse querendo dizer: escreve de modo natural, como um rio cujas águas vão surgindo à medida que as palavras brotam? Isso fazia sentido ao ler seus poemas escritos como se seguissem sua respiração. Como aquele belo exemplo com o qual abri essa memória cujo título é Do estilo.

Foi numa destas tardes entre biscoitinhos e corações que ele me confidenciou esta que, para mim, se tornou a, talvez, mais importante revelação profissional. De tanto eu insistir nos supostos segredos literários, ele falou: “Guria, eu não tenho nada para te ensinar, não gosto de falar sobre literatura, gosto é de escrever. Mas uma única coisa eu posso te dizer: trabalha, trabalha, trabalha para que o teu trabalho não apareça”.

Aquelas palavras ditas de modo tão natural e sem pretensão soaram para mim como uma iluminação. Disse isso em meio às baforadas de seu eterno cigarro. O resultado dessas palavras ditas de modo tão informal foi crescendo dentro de mim e produz seus efeitos na cozinha daquilo que chamamos de criação literária, seja em que gênero for. Reverberaram, não só naquilo que eu ainda escreveria, como no meu modo de ler outros autores, de produzir textos, de ensinar nas oficinas de poesia, leitura e criação que desenvolvi, a partir dos anos 1980.

Explico a extensão da coisa: recém-formada e cursando meu mestrado em Teoria Literária na UFRJ, eu andava, à época tomada por estudos técnicos e estruturalistas de literatura, poesia incluída. Também estava cercada por alguns escritores e acadêmicos que viam na exibição dos conhecimentos técnicos uma virtude. Mário, nesse meio, era considerado um autor popular e sua simplicidade, não raro, era vista por muitos quase como um defeito.

Trabalhar para o trabalho (isto é, os andaimes do texto) não aparecer transformou-se numa espécie de mantra que comecei a repetir nas oficinas de criação e para mim mesma sempre que me via às voltas com um texto, poético ou não. Ali estava, talvez, o antídoto contra a pretensão e contra os "cerebrismos" inúteis que nos tomam de assalto quando nos sentimos com alguma "autoridade" no campo da criação. Havia cérebro, sim. Existia emoção, ou inspiração, como queiram. Mas sobretudo o trabalho da escrita que vem da consciência, da leitura, da disciplina, isto é, o sobretrabalho das palavras. Nele incluído o senso crítico, até para mostrar o que sabemos (se é que sabemos alguma coisa).

Avalio que tive essa sorte: encontrar um Mestre, um professor de verdade. E recebi o biscoito fino do profissional enternecido sobre um assunto poucas vezes por ele comentado. O poema inicial dessa matéria revela a lucidez extrema: fala da repetição como um fator de estilo ou antiestilo ou como bobagem.

Mário publicou apenas uma única vez sobre literatura ao tentar responder às perguntas de outro poeta jovem como eu. Escreveu uma carta a esse rapaz anônimo (ah! as cartas...) que reproduzo ao final da matéria. Trata-se do único documento, seu único legado teórico, legado esse fundamental, pois serve a gregos e troianos. Nele nos mostra um pouco de sua arte poética com a doçura de sempre, a lucidez que faz jus ao seu longo currículo intelectual a que poucos se referem.

Mário Quintana foi esse intelectual e eu tive a certeza de não estar diante de um bom velhinho, como ficou talvez na memória de muitos. Estava diante do fantástico poeta e também diante do tradutor de Proust, Virgínia Woolf e tantos, acumulando Prêmios como o Jabuti, o Machado de Assis, o cronista que poderia ter sido farmacêutico ou militar mas resolveu se dedicar às letras. Eu estava diante de um grande leitor sobretudo e artífice exímio, com consciência de seu ofício, sem a mania que muitos têm de desfilar conhecimentos ao primeiro desavisado que encontram. Isso: tratava-se de um grande intelectual de vastíssima obra e simplicidade avassaladora que mereceu bem poucas atenções do meio acadêmico. Foi recusado pela ABL algumas vezes. Na terceira, desistiu. Essa era uma mágoa muito bem trabalhada pelo humor e por uma incansável produção poética. A carta transcrita em anexo é testemunha de tudo o que disse e está publicada numa antologia organizada pelo crítico Fausto Cunha, da Global Editora. Trata-se de uma tese, aula, conferência, que nome queiram lhe dar. Vale por um livro inteiro sobre teoria do fazer poético e por todas as oficinas de poesia que alguém possa realizar.

“Trabalha, trabalha, para que o teu trabalho não apareça”. Levei e levo essa lembrança vida a fora e aulas a dentro. Quando um marinheiro de primeira viagem aporta em minhas oficinas com texto em que a forma se sobressai ao conteúdo de modo desequilibrado, exibicionista, uma das primeiras providências que, com alegria, lhe ofereço é essa carta e o conselho fatal (que tenho de repetir sempre para mim mesma) recebido de Mário, no seu quarto.


Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.

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