Com honras foi apresentado por Marcus Vinicius Quiroga, o professor de literatura Ivan Cavalcanti Proença, membro daquela academia e também um ex-capitão combatente da ditadura que muito brigou naqueles duros anos, para que este homenageasse a escritora. Era o primeiro palestrante, o que introduziria e falaria sobre a obra de Carolina antes de mim, que não sou estudiosa da autora a nível de doutorado como muitos o fizeram e o fazem neste país. Estou mesmo bem longe disso pois a obra dela deve ser estudada na profundidade. Mas estava ali, olhos atentos e ouvidos disponíveis onde, quando chegasse a minha vez, eu destacaria as pérolas da literatura daquela ex-catadora de papel que, do meio da miséria nos traz notícias de seu olhar e da sua sensibilidade ao retratá-lo. Colhi o que me emocionava, imprimi e parti para o honroso convite. Agora estava ali, exposta ao que viria. Muitas coisas passavam na minha cabeça. Martinho da Vila e eu éramos na mesa os “parentes” culturais da homenageada e desse orgulho nos vestíamos.
Ivan Proença começa elogiando a Carolina, o seu relato em Quarto de despejo, enquanto traz um exemplar de 1966 nas mãos, uma raridade, publicado por iniciativa de Audálio Dantas, o jornalista que ao fazer uma reportagem na Fazenda de Canindé viu uma moradora catadora de papel, negra, protestando contra as injustiças e invasões na favela e ameaçando: “vocês vão ver, vou botar todos no meu livro”. A palavra “livro” vinda assim da boca preta da pobreza, vinda aparentemente do improvável, despertou a curiosidade e aguçou as competências jornalísticas investigativas, sociológicas do sagaz profissional. E, de uma hora pra outra, a catadora de papel estava publicada, e publicada em 24 países. Assim, num átimo tal qual Caymmi nos trouxe a vida do pescador, Carolina traz para nós, com palavras, o clima, o ambiente diário dos perenemente excluídos nas favelas.
Ia tudo muito bem no discurso do acadêmico até a hora em que, com a sagrada edição na mão, objeto de colecionador, diga-se de passagem, o homem brada, com aquele antigo desprezo que se oferece às artes não brancas nesse eurocêntrico domínio, e afirma, seguro como um cientista: “só tem uma coisa, isso não é literatura”. Estarreci. Teria me desligado? Ouvi mal? Não poderia ser da Carolina que ele falava. Era. “Isso pode ser um diário e há inclusive o gênero, mas, definitivamente, isso não é literatura”, continuou. “Cheia de períodos curtos e pobres, Carolina, sem ser imagética, semi-analfabeta, não era capaz de fazer orações subordinadas, por isso esses períodos curtos”. E seguiu destituindo sem o menor constrangimento a internacional obra da homenageada.
Meu Deus, inacreditável! Ela era o motivo da sua presença ali, tema de sua palestra, motivo da cerimônia, assunto daquele encontro, e conteúdo principal do mês dentro de um projeto em que a referida Academia homenageia escritoras. A próxima será Cecília Meireles. Aquilo complicou minha situação, porque me conhecendo sabia que não me calaria. Aos orixás da palavra invoquei por dentro para que minha reação não provocasse o que chamam de “barraco”. Que eu não fornecesse a antiga munição que costuma nutrir os argumentos dos conservadores, que se manifestam com “ela desceu o nível” e coisa e tal. Mas dava vontade.
Aquilo, se não era uma piada de mau gosto, era o que era: uma trágica demonstração de racismo, sob o fenótipo de um argumento academista. Ele exigia dela, para ser literatura, um formalismo acadêmico do qual o sucesso de sua literatura pôde prescindir. Sua capacidade em produzir imagens sem as técnicas oficiais dos literatos é que faz a sua obra objeto de estudo de grandes pensadores.
Martinho da Vila me apresentou com carinho, me tirando as ideias de vingança que vinham em bandos do lado esquerdo do pensamento. Para me acalmar e não bater o tambor da intolerância numa hora delicada, iniciei dizendo O poema do semelhante, que deu nome ao meu primeiro livro e que prega a igualdade na diversidade entre os seres. E prossegui dali: se me perguntarem o que mais me incomoda no epidêmico e sistemático racismo direi que é o olhar que depositam sobre nós a proferir as mesmas mudas perguntas: “como ousas? O que você está fazendo aqui? Você não sabe que aqui não é o seu lugar?”. Sem flagrante aparente mas intimidadora essa pergunta é feita com o olhar e não deixa dúvidas. Portanto, herdeira da coragem dessa mulher que no ano que nasci foi descoberta por escrever o seu olhar nos papéis que catava e os quais reciclava em cadernos, venho exaltar o seu escrito. Citei trechos de sua safra genial. Faca. Lâmina. Soco na boca do estômago: “quem inventou a fome, são os que comem”. “Quem não tem amigo, mas tem um livro, tem uma estrada”, “Fiz o café e fui carregar água, olhei o céu a Estrela Dalva já estava. Como é horrível pisar na lama. As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários”. E perguntei a essa altura à emocionada plateia: Isso não é literatura? Me desculpe, senhor Ivan Cavalcante Proença, o que Carolina Maria de Jesus fez chama-se Literatura e por isso estamos aqui, e por isso a tradução em tantas línguas, e por isso o maravilhoso livro Quarto de despejo que fez com que a referida autora fosse tema do Fórum das Letras de Ouro Preto, idealizado e concebido pela maravilhosa escritora Guiomar de Grammont, editora da melhor qualidade, conhecida como curadora de Feiras Literárias internacionais. Nesse fórum foi lançado um livro em sua homenagem: Memorialismo e Resistência- estudos sobre Carolina Maria de Jesus.
Pensei comigo: se o Ivan estiver certo, todo mundo é bobo, inclusive Guiomar, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. Gente que via a rara flor das letras que ela é. Mas isso eu não disse, só pensei. Mesmo quanto às exigências do formalismo, eu discordo, senhor Ivan. Carolina, em seu diário, onde diz que “eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos”, produz uma riqueza imagética que alterna períodos longos com frases curtas e poderosas. Para mim ela deixou de ser a catadora da favela de Canindé para ser a narradora de Canindé. Uma gênia, a despeito de alguns erros de concordância, as manobras de sua narrativa, as construções sociológicas do seu olhar que ela transforma com seu muito bem aproveitado restrito repertório de palavras, a Literatura que essa mulher pobre brasileira nos deixou é imensurável, ela tinha o dom. Conheço gente que terminou o ensino médio e ainda é incapaz de escrever um bilhete decente. Uma mulher que tem que dar conta de várias bocas, que passa fome e escreve sobre isso, que cata papel nas ruas, no lixo, para vender depois de muito catar, quando começa a aparecer algum peso vendável, sem contar todo o serviço de casa, tudo por sua conta e risco, e que ainda encontra tempo para escrever sua miséria nos deixando cinquenta cadernos inéditos?!
Ora, meu deus, isso só pode ser dom, aquilo que a gente tem inclinação, tendência, facilidade, mesmo excluída por conteúdo, por não ter tido acesso à escola, mesmo assim, ela foi onde raramente algum dos seus consegue ir. Seu sonho era ser professora e sua filha o é, não catadora de papel. Carolina fez o bonde andar com a sua palavra. Não reproduziu a obra da escravidão. Como fazem muitos ainda hoje.
Na tarde que virou noite, o homem em questão pediu direito à replica depois de minha fala, e eu ainda segui pedindo para que a gente fizesse uma revisão para ver o quanto de racista se poderia ser mesmo sendo intelectuais, mesmo se achando na crista da onda do pensamento contemporâneo mundial. Aproveitei a ocasião para alertar que já se tornou insustentável o racismo entre pessoas ditas do bem, entre pensadores que põem a perder todo o seu conhecimento ao assumirem posturas racistas. Jogam pelo ralo o Foucault que leram, o Sartre, e fazem temer no túmulo Lima Barreto, Cruz de Sousa e Machado de Assis. Adverti à plateia que não fica mais bem ser racista, não pega mais bem, não combina com civilização evoluída, não está mais se usando, é demodê, é hitleriano! Querem que eu desenhe? Ainda lembrei aos interessados que ninguém devia ficar constrangido por ser herdeiro de um senhor de engenho ou feitor. Quem se envergonha do longo período da holocáustica escravidão negra brasileira, deve se apoiar numa verdade pouco dita: havia aqueles, e sempre haverá durante a história, que não suportavam a barbárie acontecida nos seus quintais, nas senzalas de suas casas. Não admitiam a tortura e a matança cotidiana dos negros nos bastidores da casa grande.
Este crime cotidiano incomodou a muitos libertários da época: utópicos humanistas, sinhás que se apaixonavam pelos negões e com eles fugiam, gays, poetas, abolicionistas brancos, jovens e velhos de todo tipo tinham um lugar no quilombo e de lá lutavam pelo fim da escravidão. Portanto, os brancos que se incomodam com isso, lembrem que podem ter no sangue a herança de abolicionistas.
Falei por muito tempo, avancei as horas, achei que era oportunidade de sacudir aquele coreto. Terminada a fala, felizmente tive as palavras dos nossos preciosos Ricardo Cravo Albin e do Martinho, autorizando o teor do que eu dissera, sem maiores danos para habitual cordialidade do lugar, mas sem deixar passar, no entanto, que o que se sucedera ali foi uma grande gafe, para dizer o mínimo.
Absolutamente confortável para o senhor Ivan que, encrustado no velho classicismo deixou claro e explícito aquele velho olhar que pergunta: “o que você está fazendo aqui?”. Foi isso que aquele senhor que não merece apresentar a Carolina Maria de Jesus por não estar à altura de entendê-la, de entender a sofisticada simplicidade de sua narrativa, por não respeitá-la, por discriminá-la e por representar assim as velhas vozes machistas, classistas e racistas que não conseguem engolir a presença de uma mulher, ex-catadora de papel, negra ainda por cima, nos incensados e vaidosos salões das academias. Não será simbólica essa atitude do avesso homenageador? Não representará sua grosseira atitude o olhar de desprezo de muitos neste país? Para o senhor Ivan, Carolina Maria de Jesus jamais deveria ter se recusado a ser o resto, a ser a nula e invisível voz. Que vergonha. Mas sua voz não morreu. Está viva e grita aqui.
* Elisa Lucinda é uma atriz capixaba e é autora de livros como "A Menina Transparente", "Euteamo e suas estreias", "O Semelhante" e a "Coleção Amigo Oculto"