Carta de uma editora a um livreiro
PublishNews, Cilene Vieira*, 29/10/2015
Cilene Vieira responde a Afonso Martin e diz: ‘o que observo no meu dia a dia é muita arrogância das livrarias no trato cotidiano’

Ontem o PublishNews publicou dois artigos no estilo desabafo ou revolta. Camila Cabete, com toda razão e meu apoio, esbraveja sobre a segregação dos digitais por parte do próprio mercado. Está certíssima, é assunto passado, remoído. Hoje se não andarem juntos, impresso e digital, no cotidiano (produção, comercial, marketing etc.) das editoras é indício de atraso imperdoável. E não falo isso porque minha editora é especializada nos nada populares livros universitários, portanto, favorável aos e-books, (pra não usar o termo "divulgação científica" e todo mundo parar de ler imediatamente) ou infantis informativos (o patinho feio da área), a questão é que guardo com carinho o evento de lançamento conjunto impresso e e-book. Isso em 2010!! Há meia década! Todos já estavam lá: editora (Vieira & Lent Casa Editorial), autor (Marco Simas), livraria (Blooks do Rio) e distribuidor de e-books vendendo o leitor (Xeriph), juntos! Esse é assunto passado pra quem quer andar pra frente. Bravo, Camila!

Agora... O artigo desabafo do nosso querido Afonso Martin creio que peca pela generalização. Parece-me que e experiência que ele relata entre pequenas livrarias, o que chama de varejo, e editoras diz respeito apenas a algumas grandes editoras (as mesmas!). Minha experiência -- e de muitos amigos editores -- é justamente ao contrário, Afonso. Apoiamos, corremos atrás diariamente quase com pires na mão para que "aceitem alguns exemplares do livro consignado + 50% de desconto + frete cortesia + prazo para pagar negociável + garantia de entrega em três dias em qualquer lugar do Brasil”. Outro dia alguém escreveu na minha Timeline do Facebook: o "problema está com você que oferece 50% de desconto e ainda paga frete! ("talvez"...), ou "problema está em seus livros que não são "populares" ("talvez"...). Mas "talvez" também eu deva mesmo me retirar de um mercado perverso, porque o que observo no meu dia a dia é muita arrogância das livrarias no trato cotidiano, inclusive as de varejo (outro "talvez"... acho que deveria ter usado "principalmente" aqui...). Mesmo não tendo gasto um só centavo de todo o custo da produção do livro que venderá, muitas agem como se estivéssemos pedindo um favor. Os e-mails são grifados "Não aceitamos isso e aquilo". Pois eu nunca autorizei meus funcionários do comercial a grifarem frases ditando ordens e procedimentos mesmo sendo a parte "rica" da relação (aquela que banca o produto).

E os finais de mês?? A tortura para conseguir contato e saber se algum livro foi vendido. Conto nos dedos as livrarias que têm sistema eficiente (pra não dizer responsável) de retorno periódico das vendas. E a saga para o pagamento? Essa nem se fala, e não é por causa da atual crise, não. Sempre foi assim. Muitas não pagam e obrigam as editoras a montarem um esquema (com custo interno!) somente para fazer as devidas cobranças.

Claro que o livreiro é ponta fundamental da cadeia! Claro que o editor responsável não tentará "empurrar" seu livro se não estiver alinhado ao perfil da livraria! Temos defendido as pequenas livrarias com todas as armas de que dispomos, e muitas outras obviedades que não vale falar por aqui porque são primárias na relação de editores-livreiros responsáveis. Acredito que a "dificuldade em lidar com as editoras" de que fala Afonso contemple um universo de parceiros que não passa de meia dúzia. Não nos representa, não representa a categoria: editores. Estou certa disso. Numa coisa Afonso tem razão: essa relação precisa ser reavaliada. Sim, Afonso, com certeza! Mas, por favor, não generalize! Escrevo no "calor" dos acertos de fim de mês... que há alguns meses eu mesma conduzo para entender melhor essa relação. Aliás, esse seria um bom tema para um encontro da ANL: relacionamento livreiro e editores.

Em tempo: (1) a Vieira & Lent trabalha com pequenas livrarias do Brasil todo, falo confortavelmente depois de quase 15 anos de experiências e muitos "causos" acumulados; (2) sim, meus livros não são populares... "talvez" não entrem na disputa (livreiros e editores) pelos best-sellers.


* Cilene Vieira é editora da Vieira & Lent Casa Editorial.

[29/10/2015 23:13:17]