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Pesquisando hábitos de leitura: mudanças nas metodologias
PublishNews, Felipe Lindoso, 26/08/2015
Felipe Lindoso teve acesso a um documento do Cerlalc-Unesco o qual relaciona indicadores de leitura com desenvolvimento. Ele analisa os desafios propostos pelo documento em sua coluna dessa semana.

No dia 8 de julho passado publiquei o post Vivendo e Aprendendo – Lições na FLIP no qual comentei o fato das pesquisas sobre hábitos de leitura não capturarem novas tendências de leitura e produção de literatura. Minha atenção havia sido despertada pelo fenômeno dos saraus literários, pois participei de uma mesa com Marcelino Freire, na qual ele discorreu sobre seu projeto Quebras, com o qual visitou vários estados e constatou uma enorme vitalidade dessas manifestações.

Em outra mesa, também na FLIP, promovida pelo Instituto C&A sobre programas de incentivo à leitura, o tema voltou à baila, e houve um alerta sobre o “fascínio dos números” na análise dos fenômenos sociais, inclusive a avaliação da extensão e o impacto da leitura.

Alguns dias depois recebi um e-mail do Bernardo Jaramillo, subdiretor de Produção e Circulação do Livro do CERLALC-UNESCO, comentando o post e informando que o assunto estava no radar da instituição. E me enviou o link para o texto que era o resultado de discussões e reflexões surgidas na mesa de especialistas sobre “Indicadores de leitura, livro e desenvolvimento”, que teve lugar na Cidade do México, com o apoio do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes (Conaculta), nos dias 8, 9 e 10 de setembro de 2014. O link para o texto está aqui.

A reunião contou com um alentado grupo de especialistas convidados pelo CERLALC: Alberto Mayol Miranda, Alejandra Pellicer, Daniel Goldin, Didier Álvarez Zapata, Gemma Lluch Crespo, Germán Rey, Luis González Martín, Néstor García Canclini. Em representação da Conaculta, estiveram presentes Ricardo Cayuela Gally, Diretor Geral de Publicações, Angélica Vázquez del Mercado, Diretora Geral Adjunta de Fomento à Leitura e ao Livro, e Carlos César Ávalos Franco, Coordenador Nacional de Desenvolvimento Institucional. Pelo Cerlalc, participaram Fernando Zapata López, Diretor, e Bernardo Jaramillo Hoyos, Subdiretor de Produção e Circulação do Livro. Compareceram também representantes do Instituto Nacional de Estatística e Geografia do México (Inegi): Félix Vélez Fernández Várela, Subdiretor; Arcelia Breceda Solis, Chefe do Departamento de Desenho de Questionários de Pesquisas Especiais; Laura Josefina Quiroz Beatriz, Chefe do Departamento de Manuais de Capacitação de Pesquisas; Ricardo Alejandro Lascencia Salceda, pessoa de contato em Desenho de Instrumentos de Captação e Material de Apoio. Participaram também José Ángel Quintanilla D´Acosta e Lorenzo Gómez Morín Fuentes, Presidente do Conselho de Administração e Diretor Executivo de Funlectura, respectivamente. Esteve encarregado da elaboração do documento Roberto Igarza, com doutorado em Comunicação Social e especialização em Educação, e Lenin Monak Salinas, Coordenador de Estudos e Estatísticas do Cerlalc.

Fiz questão de transcrever a lista para ressaltar a eminente ausência de um representante brasileiro. Parece que depois que o Galeno Amorim deixou a FBN, a articulação com o CERLALC passou para um remoto pano de fundo.

Mas, enfim, trata-se de um documento muito interessante, que espero seja levado em consideração nas próximas versões do Retrato da Leitura no Brasil (caso aconteçam).

Entretanto, nem todas as questões que eu havia levantado estão consideradas no documento – o que, na verdade, não é nenhum problema, já que este ainda é um documento de trabalho.

Ressalto alguns pontos do documento do Cerlalc, na última seção analítica, precisamente intitulada Desafios.

“A visão livro-determinista que deixa um lugar secundário para a leitura de outros meios e em outros suportes que não seja o impresso”. Ponto muito importante, inclusive porque a ênfase na leitura de livros – e em certo tipo de livros, como o documento ressalta mais adiante – obscurece práticas leitoras – e de produção de textos, digo eu – que fogem da percepção elitista dos literatos e, principalmente, dos “leiturólogos”.

A incerta intersecção entre comportamento leitor e compreensão leitora”. O documento vincula esses aspectos de compreensão leitora com as pesquisas sobre a competência leitora, tal como transparece nos dados de pesquisas como a da Pisa. Os especialistas chamam a atenção para o fato de que essa relação não é tão simples como possa parecer. Obviamente, sem desmerecer a constatação das debilidades dos processos de letramento e seu resultante “analfabetismo funcional”. Mas a relação não é unívoca.

“A diferença entre práticas reais e declaradas”. Uma observação importante, pois a visão “livro-determinista” deprecia outras práticas de leitura e a própria função social desta na vida dos declarantes. O implícito é: “se não leu livro – e, principalmente, bons livros de literatura – não é leitor”.

“O registro apropriado da autopercepção identitária”. Aspecto importante que diz respeito às referências sociais (e sócio econômicas) de quem responde ao questionário, que pode se sentir intimidado pela imagem “ideal” do leitor que está implícita na situação de pesquisa.

A subavaliada leitura em tempos fragmentados”. As unidades de tempo empregadas costumam explicar as práticas sociais exemplares relacionadas com atos prolongados, de natureza imersa, situados e orientados por um propósito de lazer, baseados em uma limitada e forçada relação entre literatura e leitura. Voltamos aqui à imagem da supervalorização da “leitura literária” e a subestimação do que podemos chamar de leitura “pragmática”, ou “funcional”. Que, aliás, é prática corrente também entre os considerados bons leitores. Quando nos preparamos para algum compromisso profissional, lemos capítulos ou trechos de livros (ou artigos em periódicos) vinculados ao assunto. E esse conhecimento é fruto dessa leitura fragmentada. Não chega por osmose.

“A ambivalência das práticas digitais”. O reconhecimento de que a Internet levou a um aumento da leitura e da escrita é ainda visto de modo ambivalente. É leitura, mas não é exatamente isso. É escrita, mas também não é precisamente “a escrita”. Esse tópico se vincula diretamente ao seguinte, que se preocupa com a caracterização do problema das “unidades lidas diante das unidades não finalizadas”. Isso se refere não apenas à leitura de capítulos ou mesmo parágrafos na leitura “funcional”, como também à importância de que seja considerada mais adequadamente a prática de começar um livro e não terminar. Atire a primeira pedra quem nunca abandonou um livro chato no meio do caminho...

Os dois últimos tópicos dos desafios são dos mais importantes. O primeiro é “A hierarquização entre práticas que tende a ressaltar a leitura de lazer e de prazer, elevando-a ao nível de leitura letrada e reduzindo o valor das leituras de estudo ou profissionais (aprendizagens informais), fruto do autodidatismo, da obrigação profissional ou dos estudos (aprendizagens formais). A opção entre a leitura boa ou ruim remete incessantemente ao problema das categorias e enfatiza, cada vez mais, as questões sobre como tirar da marginalidade a leitura e a escrita entre colegas, atividades inerentes às redes sociais”; a segunda é a preocupação com “o elevado número de pessoas que se situam em um campo intermediário, sem estar compreendidos entre os leitores frequentes e os não leitores”.

O novo modelo de questionário apresentado no final é bem mais complexo e completo que o habitualmente usado nas pesquisas sobre hábitos de leitura feitas atualmente.

Eu teria várias observações pontuais a fazer sobre o questionário, mas resumo minha observação a um ponto, que entendo fundamental para a compreensão das condições sociais do acesso ao livro, em particular nas bibliotecas: acrescentar ao módulo informações específicas sobre a existência da biblioteca na comunidade do pesquisado, sua qualidade (a percepção que este tenha disso), e a distância, os meios de transporte e os horários em que o equipamento social está disponível.

Finalmente, consoante com a minha preocupação inicial, a incorporação dessas práticas sociais inovadoras de produção e consumo “direto” de textos, como nos saraus e, porque não, nas rodas de contar história e “causos” (os gaúchos entenderão isso),

Enfim, uma contribuição bem importante do CERLALC, que deve ser acompanhada com atenção pela Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do MinC, assim como pela Biblioteca Nacional, e por todos os que se interessam por essas questões.

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Recebi o pedido de fazer uma pequena retificação no texto do último post, sobre o edital que levará vinte pessoas do mercado editorial à Feira de Guadalajara. Esse edital não foi lançado pela Biblioteca Nacional, e sim pela Secretaria de Políticas Culturais do MinC, que em breve anunciará encontros para discutir o assunto com os interessados em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.

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Comentários e críticas serão bem aceitos no meu blog, www.oxisdoproblema.com.br

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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