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Na guerra da palavra, um tiro pela culatra
PublishNews, 12/08/2014
A Amazon deixou um “pedido importante” na caixa de e-mail de seus milhões de clientes,. O manifesto rogava a seus usuários que escrevessem desaforos ao megagrupo editorial Hachette

Amazon conclama leitores a lutarem ao lado dela, contra editoras e escritores.

Neste fim de semana a Amazon deixou um “pedido importante” na caixa de e-mail de cada um de seus milhões de clientes, em nome dos “Leitores unidos”. O manifesto rogava a seus usuários que escrevessem desaforos ao megagrupo editorial Hachette, a quem acusava de “formação de quadrilha” (collusion) para manter os preços de e-books em um nível desnecessariamente alto, “prejudicando” o leitor, e toda a cadeia do livro. Era ainda um contra-ataque ao bombardeio dos “Autores unidos” que a acusavam de tomar os livros como reféns na pendenga comercial e incitavam a uma blitzkrieg de e-mails para jeff@amazon.com.

Na disputa entre editoras, livrarias, escritores e leitores, a guerra é de palavras. E parece que a arma da Amazon deu chabu. Ela foi escolher logo George Orwell, o humanista radical autor de 1984 como antiporta-voz. Comentando sobre o “elitismo” das editoras e comparando a revolução dos e-books à imensa popularização dos paperbacks (livros de bolso ou brochuras), a Amazon (mal)citou Orwell: “se os editores tivessem noção, se juntariam para acabar com [os paperbacks].” Para o eventual cliente Kindle que não saiba ler, a Amazon explicitou: “isso mesmo, ele estava sugerindo o conluio”.

Vivemos em uma época de informação na ponta dos dedos, e este é justamente o negócio da Amazon. Como explicar então que ela não fez uma simples busca, ou, pior, não suspeitou que seus leitores iriam googlar a frase de Orwell. Quem o fez descobriu que o texto original é, na verdade, um elogio (ainda que cauteloso) aos paperbacks e aos livros baratos. Lá está a frase pinçada pela Amazon, um primor do understatement, querendo dizer o contrário do que está escrito. A frase inteira é “Os [paperback da] Penguin têm um valor [hoje diríamos “custo/benefício”] esplêndido, tão esplêndido que, se os outros editores tivessem noção, se juntariam para acabar com [eles]”.

Ainda que Orwell celebrasse os livros baratos, seu ensaio trazia argumentos diametralmente opostos ao do manifesto da Amazon. Comparem-se:

AMAZON: “Muitos dentro da caixa do setor editorial pensam pequeno. Acham que livros só concorrem com livros. Na verdade, livros concorrem com jogos de celular, televisão, cinema, Facebook, blogs, sites gratuitos de notícias e mais. Se quisermos uma cultura literária saudável, temos que trabalhar duro para garantir que livros sejam competitivos em relação aos outros meios, e uma parte desse trabalho duro é fazer com que os livros sejam menos dispendiosos”. Em seguida, a Amazon demonstra que uma redução de 33% do preço de capa aumentaria os royalties dos autores em 16% e o público, em 74%.

ORWELL: “É, evidentemente, um grave erro imaginar que livros baratos são bons para o comércio livreiro. Ocorre justamente o contrário. Quanto mais barato os livros se tornarem, menos se gastará em livros.” Ele predisse que quem comprava dois livros caros por mês passaria a comprar dois livros baratos e usar o troco para ir ao cinema. “Esta é uma vantagem, do ponto de vista do leitor, e não prejudica muito o mercado do livro em si, mas, para o editor, o diagramador, o escritor e o livreiro é uma catástrofe”.

Discussões sobre o impacto dos preços baixos à parte, a escolha de Orwell foi espetacularmente desastrosa para a Amazon porque fez lembrar, a muita gente, o primeiro episódio de “não-é-bem-assim” em meio à euforia libertária da leitura digital. Em 2009, a Amazon deletou, no Kindle de alguns clientes, dois livros de George Orwell que teriam sido vendidos “indevidamente”, 1984 e Revolução dos bichos (Animal farm). É difícil imaginar dois títulos mais assustadoramente adequados para tratar de controle (externo) da leitura.

Em 1984, as pessoas são subordinadas a um partido de pensamento único, que mantém um departamento para descartar os livros e histórias que não servem a seus propósitos, “exércitos de arquivistas cujo trabalho era simplesmente fazer listas de livros e periódicos a serem” jogados no incinerador conhecido como “buraco da memória”. Já Animal farm conta a história de uma experiência radical de libertação. Os animais assumem a fazenda, têm livre acesso à informação e ao bem comum, e declaram-se iguais uns aos outros. Até que uma nova elite começa a comandar e assume privilégios, porque “são mais iguais que os outros”.

Até aqui a internet e o digital nos deixaram mais próximos da utópica aldeia global de McLuhan (a democratização radical do modo de expressão) do que da distopia orwelliana de informação controlada. Porém, para que ninguém torne-se “mais igual” e que não haja sombra de “monopólio da palavra”, precisamos achar o equilíbrio entre a Amazon — que faz o papel de “caos criador”, catalizando as rupturas trazidas pelo digital e estimulando editoras, leitores e editores à inovarem e se adaptarem — e o “investimento em talento” e a liberdade de escolha proclamados pela Hachette. Um cessar-fogo na guerra das palavras, para que o tempo mostre quem (ou o que) vai prevalecer, e o que vai acontecer com o livro… se ele continuar existindo.

Afinal, nem mesmo o visionário Orwell arriscou prever as consequências do barateamento dos livros (paperbacks ou e-books). “Na posição de leitor, eu aplaudo. […] Na condição de escritor, eu abomino […] Seria uma coisa boa para a literatura, mas seria uma coisa má para o comércio livreiro. E, quando você tem que escolher entre arte e dinheiro, bem… termine a frase você mesmo”. <

Tomara que a gente possa…

Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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