“Você acha que usa a internet, mas está sendo usado por ela” diz o escritor Bernardo Carvalho. A ocasião foi o lançamento de Reprodução. O livro foi, segundo a matéria de Raquel Cozer, escrito “a partir do cenário ‘libertário’ e ao mesmo tempo ‘cheio de ódio’ da internet”.
Não é de hoje queele se preocupacom a internet, ou que (bons) escritores alertam para os males da rede, mas enquanto um Scott Turrow o faz por razões corporativistas (é presidente da Associação dos Autores dos EUA) e um Johnathan Franzen, pelo gosto dândi-decadentista, Bernardo usa de sua “literatura de reflexão” para tratar do seu incômodo.
Em Reprodução, o personagem que encadeia a narrativa não tem controle, ou consciência, do que se passa. O título se refere a ele, que troca a reflexão pela reprodução automática da algaravia fascistizante das redes sociais. A ele o autor se refere como “estudante de chinês”, e os outros personagens o descrevem como “boçal”. É o adjetivo perfeito. “Boçal”, na origem do termo, era o escravo africano que chegava ao Brasil, não conseguia aprender o português, sofria de banzo, e por isso era tratado como idiota. (O oposto do xingamento “boçal” era o elogio “crioulo”, o negro que já era “criado” no Brasil, sabia a língua, era safo).
O “estudante de chinês” é o boçal do século 21: não consegue aprender a língua dos senhores (os chineses, como ele repete ao longo do livro), se desespera para fazer parte do novo ambiente (lê “revistas semanais”, jornais) e expressa seu banzo pelo passado vituperando (ou repetindo os vitupérios) nas redes sociais. É o idiota-útil “usado” pela internet, achando que a internet, por lhe dar voz (para papagaiar o coro dos anônimos), lhe confere poder. O uso de “línguas” como metáfora da internet matando a literatura está ainda na história do assassinato do último índio que falava a única língua capaz de pronunciar o nome de Deus. Ao cancelar distâncias e expor o mundo como “aldeia global” e inviabilizar a existência de aldeias remotas (“a diversidade é um repositório de adaptabilidades”), a internet estaria matando a chance de encontrarmos a pureza, a língua única para falarmos com Deus, trocando-a pela língua que todos falam e que não quer dizer nada, o chinês.
A China do “estudante de chinês”, por sinal, é uma perfeita metáfora para a própria internet: avassaladora, irrevogável, vulgarizante, desumanizadora e, sobretudo, com uma língua que é simples demais para fazer algum sentido. “Uma em cada três pessoas fala chinês”, “os chineses serão os novos senhores”, repete o “estudante de chinês” ao longo do livro. É na China, porém, que o autor situa uma “parábola” que ilustra sua denúncia de “infantilização do público da literatura pela internet”.
Conta a parábola que, num vale remoto de uma aldeia longínqua da China, um sábio escreveu um tratado sobre velas de cera, o que lhe trouxe fama e criou uma dinastia. Mais tarde, com a chegada do lampião, que iluminava o vale como uma “nuvem de vaga-lumes”, “o tratado escrito fazia séculos pelo patriarca passou a ser lido como poesia”. Mais tarde ainda, com a chegada da lâmpada elétrica e a nivelização brutal da Revolução Cultural, a herança e os ensinamentos do patriarca chinês tornaram-se motivo de vergonha burguesa. A metáfora aqui é escancarada — a luz é o conhecimento, a reflexão, a literatura em suma. É divina quando é remota (cera), redentora quando é para poucos (lampião) e perde todo o sentido e valor quando é para todos (lâmpada).
Há um conflito intrínseco entre a literatura de Bernardo Carvalho e a internet. Narrativas como Nove noites e Mongólia partem do árido e progridem aos poucos desvendando novas camadas de significados, dando sentido(s) à narrativa. É uma literatura em que é preciso descobrir camadas, sucessivas e cada vez mais puras, como uma cebola. A internet é a anticebola: todas as camadas estão expostas e refogadas. Há tanta informação que ela volta a perder sentido, torna-se apenas estímulo improcessável. Um acelerador hormonal. Escrever como Bernardo Carvalho no ambiente da internet é como fazer um teatro de sombras ao sol a pino.
A síntese está na página 153. A internet é “um diálogo de surdos. Só um decide o que quer ouvir e o que o outro vai dizer”. Uma definição precisa, talvez. Porém, pensando bem, a definição presta-se perfeitamente à própria literatura: “inventar o que o personagem vai dizer e assim decidir o que o leitor quer ouvir. Os chineses vêm aí.
Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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