Publicidade
Publicidade
A cabeceira transcendente
PublishNews, 30/08/2012
Nossas bibliotecas estarão sempre conosco

Fahrenheit 451 — uns 233° C — é a temperatura necessária para queimar livros e todo o conhecimento neles contido. Sem poder confiar no suporte impresso, algumas pessoas resolveram tornar-se “livros” — memorizando os textos e “lendo-se” umas para as outras. Porém, para acabar com esses “livros humanos” precisa-se de uma temperatura bem mais baixa — ou pode-se resolver a questão com uma simples bala de revólver. O que Ray Bradbury, visionário escritor de ficção científica, não imaginou é que o conhecimento um dia estaria à prova de fogo, bala, estricnina e peixeira de baiano — já que não dependeria de suporte algum, nem dos livros e suas páginas inflamáveis, nem das pessoas e seus corpos perecíveis.

Livros e bibliotecas agora estão em todo lugar. E em nenhum lugar. Ficam, metaforicamente, no céu, assim como os santos, as estrelas e os aviões de carreira.

Nesse período de transição entre mídias — ou, melhor, de surgimento de uma nova mídia — estamos mais preocupados em tornar os e-books parecidos com os livros tradicionais do que em explorar seu potencial. Porém pouco a pouco vamos relaxando nossas preconcepções, forjadas em 600 anos de livros gutemberguianos, para questionar algumas das limitações do livro impresso, que não necessariamente têm de ser transpostas ao livro digital. A imutabilidade (por que um livro tem que ser o mesmo, em todos os “exemplares” e para todos os leitores, para sempre?), a incomunicabilidade (por que a mensagem só pode passar do autor para o leitor, e não entre eles, ou entre uma comunidade de leitores?) a linearidade da narrativa (por que a história não pode ir crescendo ou se ramificando, na medida em que é lida?) são apenas algumas das fronteiras (difusas, desafiadoras) que se abrem com os textos digitais.

Uma das fronteiras que já está sendo desbravada economicamente é a da ubiquidade — livros em todos os lugares, e lidos em qualquer suporte. Quando se compra um livro na Apple, Amazon, Kobo, Copia, por exemplo, está se montando uma biblioteca pessoal, imaterial e prontamente acessível, independente do suporte. Lê-se no e-reader, telefone ou computador — sejam pessoais, públicos ou emprestados, bastando um login para entrar na “sua” biblioteca. Isso é uma quebra de paradigma (desculpe o cliché), na medida em que o livro impresso sempre cumpriu a lógica mercantilista “pague e pegue”, isto é, os leitores/consumidores querem comprar um objeto tangível, que seja de sua propriedade (e que fique na sua estante). Porém, como disse o setentão “livros são objetos transcendentes” e, com o digital, transcenderam de vez. O que se está vendendo aqui não é bem uma mercadoria, mas um direito — o de acesso a um livro. Essa é uma noção que custa a vingar no Brasil, onde editores e agentes do governo insistem nos aspectos materiais (e mercantilistas), investindo em e-readers e não na formação de uma cadeia de conteúdo que lhes dê sentido.

Já os grandes da economia da cultura digital — Amazon, Apple, Kobo, Copia etc. — perceberam que os aparelhos passam (quebram, ficam obsoletos), mas as bibliotecas pessoais ficam — são negócios a longo prazo. Para amealharem a maior fatia do mercado de leitores, partiram para estratégias variadas, como armazenamento gratuito (Amazon), leitura social (Copia), interface “cool” (Kobo) etc. (É de se perguntar se algum dia será possível um serviço para livros equivalente ao Match, da Apple, que consolida em uma biblioteca pessoal todas as músicas do usuário, incluindo as compradas na Apple, na concorrência — e até as pirateadas.)

Uma biblioteca pessoal e prontamente consultável — ainda que imaterial, ou justamente por ser imaterial — será um fator de expressão de nossa individualidade, e um canal de diálogo com outras pessoas, que compartilhem de nossa “identidade” leitora. Nossos livros de formação (ou “deformação”) estarão sempre na ponta da língua (ou à distância de cliques). Deixar para os herdeiros um login e uma senha será um legado bem maior do que prateleiras abarrotadas (ainda que não se tenha se estabelecido ainda, juridicamente, se uma biblioteca virtual é um bem ou direito transmissível por herança).

No Brasil damos alguns passos, incipientes mas importantes, em direção a bibliotecas imateriais e a um novo hábito de leitura, no qual uma conta (ou um histórico) será muito mais importante que o suporte de leitura. Uma desses passos é a Pasta do Professor, que recentemente se gabou de ter entregue mais de meio bilhão de páginas a seus assinantes, alunos de ensino superior. A iniciativa ainda é muito calcada no combate à pirataria, mas está no caminho certo para deixar de ser uma reação e torna-se uma ação, fomentando um novo modelo de leitura e publicação. E a Nuvem de Livros segue propiciando aos leitores a experiência de montar sua biblioteca, sua base de conhecimento e entretenimento, a partir de um amplo conteúdo, independente do suporte. Outras iniciativas, startups e experiências, vêm despontando, e comprovando que a mudança, de onde menos se espera — editoras e livrarias consolidadas — é que não virá mesmo (como foi debatido em Londres, esse ano).

A estante pessoal de prateleiras infinitas, da qual podemos puxar a qualquer hora nossas histórias mais queridas ou as opiniões que ajudaram a forjar quem somos, já está a nosso alcance, e, ainda que imaterial, dá concretude ao velho adágio de que cada homem é uma biblioteca.

Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

Publicidade

A Alta Novel é um selo novo que transita entre vários segmentos e busca unir diferentes gêneros com publicações que inspirem leitores de diferentes idades, mostrando um compromisso com qualidade e diversidade. Conheça nossos livros clicando aqui!

Leia também
Em seu último relato sobre sua primeira participação na Feira de Bolonha, Julio Silveira conta o que viu, o que não viu e o que aprendeu com o evento
No seu segundo dia na Feira do Livro Infantil de Bolonha, Julio Silveira fala sobre as tendências que identificou no evento
Em seu primeiro dia na Feira do Livro Infantil de Bolonha, Julio Silveira faz comparações entre o evento italiano e a Feira do Livro de Frankfurt
Já é possível escrever e ilustrar um livro inteiro em algumas horas com inteligência artificial. O que isso significa para o mercado das ideias?
Portugal reabre livrarias e editoras brasileiras já podem participar da retomada
Publicidade

Mais de 13 mil pessoas recebem todos os dias a newsletter do PublishNews em suas caixas postais. Desta forma, elas estão sempre atualizadas com as últimas notícias do mercado editorial. Disparamos o informativo sempre antes do meio-dia e, graças ao nosso trabalho de edição e curadoria, você não precisa mais do que 10 minutos para ficar por dentro das novidades. E o melhor: É gratuito! Não perca tempo, clique aqui e assine agora mesmo a newsletter do PublishNews.

Outras colunas
Escrito por Ligia Nascimento Seixas, em 'Pedro e a busca pela sua história', o personagem embarca em uma jornada inesperada para desvendar os segredos da sua própria vida, numa emocionante aventura literária
'Contra-coroa II' mergulha na trama de uma família real; obra foi escrita pela autora Amanda Grílli, que se destaca no cenário nacional independente trazendo uma mensagem de representatividade
Seção publieditorial do PublishNews traz obras lançadas pelas autoras Amanda Grílli e Ligia Nascimento Seixas
Em novo artigo, Paulo Tedesco fala sobre a importância da regulação da comunicação digital e ações para frear a mentira e a violência digital e informativa
Neste episódio nossa equipe conversou com Rita Palmeira e Flávia Santos, responsáveis pela curadoria e coordenadoria de vendas da livraria do centro de São Paulo que irá se expandir em breve com nova loja no Cultura Artística
Penso que romances, contos, poesia, podem abrir para leitor diversas janelas para o mundo exterior e para dentro de si mesmo.
Amós Oz
Escritor israelense (1939-2018)
Publicidade

Você está buscando um emprego no mercado editorial? O PublishNews oferece um banco de vagas abertas em diversas empresas da cadeia do livro. E se você quiser anunciar uma vaga em sua empresa, entre em contato.

Procurar

Precisando de um capista, de um diagramador ou de uma gráfica? Ou de um conversor de e-books? Seja o que for, você poderá encontrar no nosso Guia de Fornecedores. E para anunciar sua empresa, entre em contato.

Procurar

O PublishNews nasceu como uma newsletter. E esta continua sendo nossa principal ferramenta de comunicação. Quer receber diariamente todas as notícias do mundo do livro resumidas em um parágrafo?

Assinar