Editoras estão experimentando publicações que começam antes e terminam (se tanto) muito depois do que estamos acostumados.
Digamos que você tenha seguido o conselho de Monteiro Lobato e tenha plantado uma árvore, feito um filho e escrito um livro. Depois de vinte anos, se você tiver feito tudo certo, sua árvore e seu filho vão ter crescido, mudado e dado frutos. Já seu livro vai estar do mesmo jeito. Pode até ter dado frutos — metafóricos —, mas estará do mesmo jeito, terá o mesmo texto de quando saiu da gráfica, talvez um pouco amarelado.
Isso porque o que compreendemos por livro hoje é um suporte em que o conteúdo foi fixado e reproduzido em grandes tiragens. O texto é sempre o mesmo, em cada exemplar e ao longo do tempo — e alterações e inclusões só ocorrem quando (e se) houver uma nova edição. Óbvio? Sim, mas não foi sempre assim: antes de Gutenberg, cada livro que saía das mãos do copista já era único, e tornava-se cada vez mais distinto na medida em que nele se amontoavam as anotações e outras interferências dos leitores. A imprensa estabeleceu que cada exemplar de um livro é uma cópia fiel da matriz. Seis séculos depois, o digital traz a possibilidade de que cada livro volte a ser único, reflita o contexto de seu leitor e altere-se, recebendo anotações e atualizações ao longo do tempo. Mas para que, mesmo?
Para certas categorias de livro, a imutabilidade é um fardo e a capacidade de atualização é uma bênção. Pense nos milhares de livros jurídicos ou guias de viagem que são jogados fora quando se votam novas leis ou quando os endereços e telefones ficam defasados e você terá uma aplicação urgente para a nova possibilidade de atualização constante. Vai para o tribunal ou para o aeroporto? Não esqueça de fazer o upgrade! Expandindo essa ideia, algumas editoras já implementaram o tal serviço de “upgrade” para seus títulos. Quem adquirir um livro (impresso ou digital) da O’Reilly, por exemplo, tem direito a baixar novas versões (ou “edições”) digitais, o que pode significar alterações nos dados ou acréscimos feito pelo autor. A editora ainda facilita a notificação, pelo leitor, de qualquer erro que ele tenha encontrado, e promete retificar os livros em seguida. (Como Machado de Assis teria adorado poder fazer isso em 1900…) .
Essa prática de constantes upgrades tem a vantagem evidente de fidelizar o leitor, tornando-o “membro” (e cliente) da editora, para não dizer revisor e copidesque voluntário. Por outro lado, isso leva à pergunta: se o livro sofre alterações constantes, quando termina a publicação?
O trabalho nas editoras hoje, de certo modo, se assemelha ao de construtoras. Uma vez a “casa” construída, passa-se para a outra. O livro depois de publicado dorme em um PDF em alguma gaveta eletrônica e de lá só sai para reimpressões ou para uma muito eventual nova edição, revisada. O que a O’Reilly está fazendo é estender o trabalho do editor (de selecionar, compilar e arranjar o texto) para além do livro “pronto”. É como uma casa que nunca terminasse de ser construída. (Mais uma semelhança: as obras literárias, assim como as obras em nossa casa, passarão a não ter fim…). Precisaremos de uma nova categoria de editores, os pós-editores, responsáveis por manter os dados atualizados e selecionar as contribuições dos leitores para os livros que já foram lançados.
Se essa perspectiva de trabalhar ad aeternum no mesmo livro já causa preguiça antecipada em alguns colegas editores, o que dizer de um editor pré-livro? Outras editoras vêm envolvendo autores e leitores na etapa mais precoce da produção de um livro — a própria escrita. Um leitor da Red Lemonade, por exemplo, pode colaborar com o autor e o editor em um livro que só será publicado meses depois. A mesma O’Reilly que oferece upgrades a quem compra seus livros oferece também livros incompletos. Você adquire, por exemplo um livro que só tem a primeira parte e o sumário e, à medida em que o autor vai completando o livro, você recebe os capítulos seguintes. Em outras palavras, você compra à vista e lê a prazo.
Falando em ler a prazo, o digital também resgata uma velha novidade — o folhetim. Algumas editoras startup vêm lançando romances em conta-gotas: o leitor recebe o primeiro capítulo (geralmente de graça) e, se gostar, assina e passa a seguir a história, que é contada em parcelas semanais. Como o autor “conversa” pela mídia social com seus leitores, estes podem influenciar o desencadeamento da trama e até provocar desdobramentos paralelos (spin-offs). É interessante notar que boa parte dos clássicos que conhecemos surgiu da mesma maneira. Dickens, Victor Hugo e Tolstói são alguns dos membros do Cânone Ocidental que escreveram grandes livros em pequenas parcelas publicadas nos jornais e que sofriam influência da resposta dos leitores. Posteriormente, editores compilaram as milhares de páginas de jornal e as muitas versões e opiniões e nos apresentaram Oliver Twist, Os miseráveis e Guerra e paz do jeito que conhecemos — fixando (literalmente) o texto de obras que até então eram dinâmicas.
Mas não vá sugerir a um grande autor contemporâneo, Johnathan Franzen, que o digital e o e-book possam colaborar na criação de novos clássicos. O autor de Liberdade gosta das coisas bem presas e não admitiria correções em seu As correções:
“Eu acho que, para os leitores sérios, um sentido de permanência tem sido sempre parte da experiência. Todo o resto na sua vida é fluido, mas este texto não muda. Haverá ainda leitores daqui a 50 anos que se sentirão assim? Que têm essa fome de algo permanente e imutável? Eu não tenho uma bola de cristal. Mas eu tenho medo que vai ser muito difícil fazer o mundo funcionar se não houver permanência assim. Esse tipo de contingência radical não é compatível com um sistema de justiça ou autogoverno responsável.”
Sério, mister Franzen? Livros que evoluam a partir do diálogo farão do mundo uma anarquia? Conte outra. Para a Oprah. Com quem, por sinal, você recusou-se a dialogar. Só para depois arrepender-se.
Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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