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Banir ou censurar?
PublishNews, 10/10/2011
Banir ou censurar?

Nasci e cresci entre livros. Na minha casa havia uma boa biblioteca, meus pais eram leitores, se falava de livros à mesa, em reuniões. Sem dúvida, um privilégio. Me lembro de, desde sempre, ter uma estante no meu quarto com meus livros, muitos dos quais me acompanharam, atravessaram o Oceano, quando nos mudamos da Espanha para o Brasil. Até hoje, alguns deles, bastante comprometidos fisicamente, encontram seu lugar em casa.

Reconstruindo minha história de leitura, me lembro de vários livros, muitos deles informativos, de conhecimento, em cima dos quais meu irmão e eu passávamos fins de semana inteiros copiando ilustrações e sonhando com as novas descobertas. Porém, meu livro de referência, aquele cuja leitura me marcou profundamente e que li e reli, já nem me lembrou quantas vezes, foi O diário de Anne Frank. A memória é tão forte que, com ou sem o peso do tempo, me lembro das emoções e das marcas de vários momentos dessas leituras, quando frente à indignação e à profunda solidariedade com Anne, olhava pela janela da minha casa em Madrid e era difícil parar de chorar. Me lembro também de Oliver Twist, de Pinóquio, de vários livros de Dickens...

Mas, se estas são algumas das lembranças mais marcantes das minhas primeiras leituras, não posso esquecer-me de alguns personagens que povoaram a minha infância e sem os quais provavelmente as minhas recordações seriam bem diferentes. Isto porque certamente meu imaginário e algumas de minhas primeiras referências sobre o mundo foram dali extraídas. Penso nas histórias em quadrinhos, nos gibis, em Asterix e em todos os gauleses, em Tintin, em Babar, no Pato Donald. Se a isso somarmos os filmes de Disney, Os Flinstones e algumas séries como A Feiticeira, parte de minhas primeiras referências está desvendada.

Ao ler a notícia Tintin no Congo insulta os negros” num jornal espanhol há alguns dias fiquei pensando até que ponto essas minhas leituras de infância interferiram na minha formação ideológica e puderam ser tão marcantes nesse plano. Principalmente numa época em que essas questões eram vistas com naturalidade, sem grandes advertências, diferente do que ocorre hoje.

Essa cruzada contra os conteúdos “politicamente incorretos” não é privilégio do Brasil e o ataque a Lobato não é isolado, mas parte de uma tendência mundial que coloca de lado obras e autores da envergadura de um Lobato, de um Dickens, de um Twain, só para citar alguns. É inegável que há traços de racismo, de discriminação e de preconceitos em muitos desses autores. É inegável também que essas histórias não se resumem a isso, se tornaram clássicos e sobrevivem até hoje. Supor que esses autores devam ser banidos da infância ou “adaptados” aos novos tempos, em nome de uma nova consciência contemporânea, é no mínimo perigoso, arbitrário e empobrecedor.

Se de fato, as consciências do século XXI se chocam com muitas coisas até poucos anos atrás consideradas dentro da normalidade, isso não quer dizer que a infância e a juventude devam ser “protegidas” de tudo que não estiver de acordo com essa nova filosofia dominante. Ao contrário, pois muitos de nós que tivemos, naturalmente, contato com essa literatura “comprometida” ideologicamente não nos tornamos, por exemplo, racistas ou preconceituosos.

As crianças e jovens de hoje podem, sim, usufruir da qualidade literária e da fantasia que caracterizam esses autores e suas obras. Entrar em contato com diferentes modos de ver e interpretar a realidade pode levar a uma reflexão sem artificialismos sobre tolerância e diversidade. Além disso, crianças e jovens dirigem o foco sobre aspectos, na maioria das vezes, opostos aos dos adultos. O ponto de vista e o peso diferem não só pelo olhar leve e aberto e pela ausência de preconceitos, mas também e, porque não, por não se levar tão a sério e deixar fruir a imaginação, o sonho, o humor, a ironia que muitos adultos perderam.

Essas questões são um prato cheio para refletir a edição da literatura para crianças e jovens e a mediação, pois remete a critérios e a quem temos em mente como sendo nosso receptor. O que é importante e para quem? Se por um lado é cada vez mais difícil encontrar livros com conotações politicamente incorretas ou menos edificantes, por outro o humor, a brincadeira, a ludicidade, o maravilhoso, a irreverência e a transgressão, o suspense, o medo e a aventura, são, sem dúvida, elementos que historicamente capturaram o jovem leitor.

O que ficou de lembrança de minhas leituras de Tintin? A vontade de virar repórter e viajante, o suspense, a esperteza da personagem em desvendar mistérios, as tramas de espionagens, os países sequer imaginados, as aventuras sem fim e, claro, Milou, seu cachorro astucioso e companheiro inseparável. Fui forjando uma visão crítica com o tempo, com o contato com outras leituras, com o amadurecimento de meu ponto de vista e de minhas referências. Tudo isso me fez entender melhor a personagem e o contexto onde se desenrolam as aventuras, ir mais fundo no tempo da obra.

Suponho que todos os que fomos marcados por esses autores compartilhamos de um mesmo prazer e de lembranças comuns. Gostaríamos de mantê-las vivas nas novas gerações? Ou vamos aderir à censura das obras literárias que não condizem com a nossa época?

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Dolores Prades é editora, gestora e consultora na área editorial de literatura para crianças e jovens. É membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen e curadora da FLUPP. É também coordenadora do projeto Conversas ao Pé da Página - Seminários sobre Leitura, e da área de literatura para crianças e jovens da Revista Eletrônica Emília. Sua coluna pretende discutir temas relacionados à edição e ao mercado da literatura para crianças e jovens, promover a crítica da produção nacional e internacional deste segmento editorial e refletir sobre fundamentos e práticas em torno da leitura e da formação de leitores. Seu LinkedIn pode ser acessado aqui.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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