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“A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”
PublishNews, 06/09/2011
“A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”

Oswald de Andrade sempre foi um dos meus heróis na literatura brasileira. Pela produção literária, pela militância na literatura e na política, por seu desassombro e atrevimento. Maria José Silveira, Márcio Souza e eu usamos essa frase como lema da Marco Zero, a editora que fundamos e mantivemos por dezoito anos.

Quando escrevi O Brasil pode ser um país de leitores?, mencionei na introdução: “A massa dificilmente comerá do biscoito fino se a ele não tiver acesso e ficar reduzida ao consumo da broa de milho [...] O esforço aqui apresentado é o da discussão de como fazer o “biscoito fino” chegar à massa.” (p. 16).

Trata-se, portanto, de preocupação constante e recorrente, que abrange a discussão de impasses e dificuldades do mercado editorial e possíveis soluções. Afinal, o que me levou a estudar essas questões foi também certo grau de frustração pela massa não consumir em quantidade o “biscoito fino” que produzíamos na Marco Zero.

Em agosto de 2007 escrevi um esboço de projeto, chamado precisamente “Biscoito Fino”, que entreguei ao então coordenador do livro e leitura do MinC, Jefferson Assumção, no qual dava algumas sugestões para um programa de aquisição de livros para bibliotecas públicas, aproveitando o grande fundo de títulos que vai se formando no transcorrer dos anos. Esse projeto, aperfeiçoado e ampliado pelo Galeno Amorim, foi a base do Programa do Livro Popular lançado pela Presidente Dilma na Bienal do Livro.

Entre as barreiras que dificultam o acesso da massa ao “biscoito fino” podemos citar os problemas de distribuição dos livros em um país de dimensões continentais e com uma precária rede de livrarias; a péssima qualidade e a pequena quantidade de bibliotecas públicas; o “ciclo de vida” curto dos livros lançados, decorrente em grande medida dos dois fatores mencionados. A qualidade de um livro não deve ser medida pelo tempo em que fica exposto nas livrarias, mas a verdade é que a grande quantidade de lançamentos impõe um “ciclo de vida” ditado exclusivamente por esse interesse comercial, que independe da qualidade e da importância do texto. Obviamente, isso vale para os bons e para os maus livros. Se o livro não tem uma venda rápida e não entra nas listas de mais vendidos, ou se não é progressivamente adotado pelas escolas e universidades e se transforma em um “long-seller”, o seu desaparecimento do radar de possíveis leitores é inexorável, e tais livros entram numa espécie de “clandestinidade”. E livro não tem prazo de validade, o que torna trágica essa situação.

O desenvolvimento da Internet facilitou, em grande medida, a sobrevivência dos livros de catálogo para os compradores que efetivamente busquem um livro ou um autor. Os mecanismos de buscas nos catálogos das livrarias on-line e mesmo nos sebos (que bela a iniciativa da Estante Virtual!) facilitam muito a vida de quem sai atrás de um livro. Mas o fato é que temos uma imensidão de títulos perdidos nesse limbo, encontráveis apenas com determinação por quem quer comprar algum exemplar determinados.

Esse processo é agravado pela situação das bibliotecas públicas. Em primeiro lugar pela precariedade da rede, muito aquém do que seria minimamente desejável em um país que investisse seriamente no acesso ao livro.

A situação das bibliotecas públicas tem se modificado nos últimos anos, embora ainda em um ritmo aquém do desejável. Entretanto, outro fator complica a questão, e esse fator se apresenta insidiosamente na elaboração das listas para aquisição de acervos. Listas elaboradas por pessoas competentes, capacitadas e empenhadas na promoção do que se convencionou chamar de “boa leitura”. Pessoas competentes e de boa vontade.

Só que, como proclama o ditado, de boa vontade está pavimentado o caminho do inferno.

As listas atuam de forma restritiva na composição do acervo das bibliotecas de modo ainda mais violento que a dinâmica do mercado. A imposição dos critérios dos selecionadores restringe drasticamente a possibilidade das escolhas dos frequentadores de bibliotecas. As comissões de seleção escolhem em função das suas concepções do que sejam os “bons livros”, preocupação meritória, etc. etc.

Mas essa perspectiva esquece um pequeno e fundamental detalhe: a biblioteca é, em primeiro lugar, um SERVIÇO PÚBLICO. Financiada direta ou indiretamente pelo imposto de todos, sua primeira missão deve ser atender às necessidades da população, que se expressam na busca dos mais diferenciados títulos de literatura ou de conhecimentos. As bibliotecas não existem para satisfazer os interesses intelectuais e ideológicos de meia dúzia de pessoas que, com toda boa vontade, acabam por expressar arrogantemente um enorme desrespeito pelas necessidades de outros.

Quando, em 1850, os cartistas (sindicalistas) impulsionaram a Lei das bibliotecas Públicas na Inglaterra, apoiados por filósofos utilitaristas, como John Stuart Mills, defendiam a ideia de que aquelas instituições não apenas ofereceriam instrução (o ideal enciclopedista), como também meios de desfrutar do repouso e da reflexão. Essa perspectiva se reflete nos Estados Unidos, mas tem gente que esquece hoje que Melville Dewey criou o seu sistema de classificação decimal precisamente para que se pudessem achar nos livros o que interessasse ao leitor.

O fundamento da biblioteca pública, tais como expressados nos documentos da UNESCO, é o de tornar acessível a mais ampla gama de ofertas aos possíveis leitores. E as comissões de seleção partem de um princípio totalmente diferente, que é o de decidir o que ofertar aos possíveis leitores dentre os melhores livros entendidos como tais pela própria comissão.

A base do projeto “Biscoito Fino” partia da conjunção da ideia de ofertar aos leitores e mais ampla gama de títulos e do conhecimento de que milhares de publicações passavam praticamente para a clandestinidade depois de certo tempo.

Nele eu propunha que o MinC desenvolvesse um sistema para aquisição desse tesouro adormecido, dessa quantidade de “biscoitos finos”, para o sistema de bibliotecas públicas.

Quatro anos se passaram e o projeto finalmente vem à luz, melhorado, aperfeiçoado e ampliado sob a direção do Galeno Amorim, e anunciado na inauguração da Bienal do Livro do Rio de Janeiro pela presidente Dilma Roussef.

Melhorado, aperfeiçoado e ampliado de várias formas.

Em primeiro lugar, o portal da Biblioteca Nacional onde serão cadastradas as ofertas do Livro Popular não se destina apenas às bibliotecas públicas. Qualquer pessoa poderá conhecer essa gama de livros que estava soterrada pelos novos lançamentos e que ressurge com um preço realmente acessível. O que eu tinha imaginado apenas para as bibliotecas se transforma, na versão “Programa do Livro Popular”, em possibilidade de acesso para quem os queira ter em casa, adquiridos nos pontos de venda cadastrados no programa.

Esse é o segundo ponto importante do programa: o esforço para ampliação dos pontos de venda, incluindo bancas de jornais, vendedores porta-a-porta e outras instituições que se interessem em participar. Essa capilarização pode se tornar realidade porque esses trinta e tantos milhões de reais destinados às bibliotecas passarão necessariamente, por esses pontos de venda, cortando o ciclo nocivo das vendas diretas pelas editoras, que efetivamente asfixia a venda de livro no varejo. Caberá aos proprietários e administradores desses pontos de venda cuidar de desenvolver sua clientela, oferecendo serviços adequados para a entrega de livros nos pontos mais distantes do país.

O programa restitui aos responsáveis pelas bibliotecas públicas a possibilidade de dialogar com seu público e adquirir os livros que sejam demandados, e não os que compõem listas decididas no Rio de Janeiro e em Brasília para responder a perfis de usuários do Oiapoque ao Chuí.

Finalmente, abre a possibilidade de incorporação de novos contingentes de compradores de livros. Caberá às editoras aproveitar a oportunidade de desenvolver produtos editoriais de qualidade e dentro dos parâmetros do preço de capa estabelecidos pelo programa. A incorporação desses novos compradores poderá proporcionar um salto na penetração da leitura, no aumento dos consumidores de livros – que podem emigrar para outros títulos – se os editores souberem desenvolver esse segmento de mercado.

Certamente haverá dificuldades, problemas e erros no início da execução de um programa tão ambicioso. Isso não deve desencorajar o desenvolvimento do projeto. Ao contrário, servirá para aperfeiçoá-lo ainda mais. Até que a massa tenha realmente oportunidade de consumir o “biscoito fino” que nossos autores escrevem, as editoras publicam e os livreiros distribuem e com isso fortalecer, também, a democracia em nosso país.

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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