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'Rosa de Hiroxima'
PublishNews, Gustavo Martins de Almeida, 11/05/2020
Em artigo, Gustavo Martins faz um estudo sobre a poesia 'Rosa de Hiroxima' publicada em 1946 por Vinicius de Moraes, entremeando com análise jurídica sobre a poesia que se torna composição musical

Uma poesia, quando incluída numa composição musical, passa a ter roupagem jurídica diferente no âmbito do direito autoral, agregando ao fato de ser apenas uma obra literária e ganhando nova qualificação, a de obra musical. As implicações jurídicas dessa nova categoria serão brevemente apreciadas neste artigo.

Vinicius de Moraes (1913-1980) é conhecido pelas geniais e sensíveis composições musicais com Tom Jobim, Toquinho e vários outros, além de interpretações magistrais dessas canções. Sua vasta obra literária, no entanto, não tem o mesmo alcance popular de suas criações no campo da música. Além de artista, integrou a carreira diplomática, tendo passado no concurso para o Itamaraty em 1943 e sido cassado pelo AI-5 em 1968, sempre se dedicando a música e literatura.

Em 1946, quando servia ao Itamaraty em Los Angeles, Vinicius escreve a poesia Rosa de Hiroxima (uso a grafia do site de Vinicius de Moraes, que é confirmada pelo site InfoEscola, embora seja aceita a grafia do nome da cidade com sh), em protesto contra os bombardeios atômicos dos EUA sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, ocorridos em agosto 1945. A obra é publicada na Antologia poética de Vinicius, editada em 1954, e há uma interessante análise do texto feita por Rebeca Fucks, no site Cultura Genial, na qual compara o cogumelo atômico da bomba à figura de uma rosa.

Em 1973 é lançado o grupo musical brasileiro Secos & Molhados, composto originariamente por Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad. Este último musicou o poema de Vinícius, e, segundo o livro lançado em 2019, Primavera nos dentes – A história do Secos & Molhados, de Miguel de Almeida, a versão musical foi executada em frente ao poeta, em encontro casual numa gravadora, e por ele aprovada.

Assim, Rosa de Hiroxima entrou na lista das canções mais tocadas e fonogramas mais vendidos da década de 1970. Os primeiros versos, que a voz de Ney Matogrosso popularizou, são de fácil reconhecimento:

“Pensem nas crianças,
Mudas telepáticas,
Pensem nas meninas,
Cegas inexatas.”

Na mesma época Vinicius escreve outra poesia, mais explícita, com o título Bomba atômica, da qual se extrai o seguinte:

“Flor puríssima do urânio
Desabrochada no chão
Da cor pálida do helium
E odor de radium fatal
Lœlia mineral carnívora
Radiosa rosa radical.”

Mas a inclusão da poesia numa composição musical tornou-a notória, sendo que muitos ignoravam – e ainda ignoram – ser a “letra” de autoria de Vinicius de Morais, embora conheçam-na de cor.

Direito. E onde entra o direito nesses fatos? Na verdade, ele permeia toda essa história, por vários ângulos.

Desnecessidade de registro de obras literárias. Primeiramente, a lei 9610/98 diz que para serem protegidas pelo direito autoral, as obras não necessitam de registro (Art. 18. A proteção aos direitos de que trata esta Lei independe de registro.). Basta a sua criação e já se forma o vínculo entre o criador e o fruto de seu intelecto, expresso numa criação (Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível,....).

“Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas”

Então quando escreveu Rosa de Hiroxima, o autor não registrou sua obra, ele a criou e depois a poesia foi publicada na Antologia Poética de Vinicius, de 1954.

Depósito Legal. O registro do livro Antologia Poética, no entanto, consta da Biblioteca Nacional, por força da obrigação de depósito, naquela instituição, de toda a produção bibliográfica nacional desde o Império, confirmada na República (Decreto nº 1.825, de 20 de dezembro de 1907, “Art. 1º. Os administradores de officinas de typographia, lithographia, photographia ou gravura, situadas no Districto Federal e nos Estados, são obrigados a remeter a, Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro um exemplar de cada obra que executarem”. Atualmente, por força da Lei Nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004, essa obrigação persiste (Art. 1º Esta Lei regulamenta o depósito legal de publicações, na Biblioteca Nacional, objetivando assegurar o registro e a guarda da produção intelectual nacional, além de possibilitar o controle, a elaboração e a divulgação da bibliografia brasileira corrente, bem como a defesa e a preservação da língua e cultura nacionais. Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se: I - Depósito legal: a exigência estabelecida em lei para depositar, em instituições específicas, um ou mais exemplares, de todas as publicações, produzidas por qualquer meio ou processo, para distribuição gratuita ou venda).

Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária

Edição Princeps. Então a poesia, a obra literária, Rosa de Hiroxima não tem registro próprio e individualizado em algum órgão público, apenas consta do livro Antologia poética de Vinicius de Moraes publicada em 1954. Essa foi a primeira edição da obra, a chamada edição princeps (NBR 6029, item 3.46).

ISBN. Mas as obras literárias têm um ISBN. Até 2019 era atribuição da Fundação Biblioteca Nacional, hoje é da Câmara Brasileira do Livro. Reproduzo o texto da CBL, pela clareza: “O ISBN (International Standard Book Number/ Padrão Internacional de Numeração de Livro) é um padrão numérico criado com o objetivo de fornecer uma espécie de "RG" para publicações monográficas, como livros, artigos e apostilas. A difusão global do ISBN e a facilidade com que é lido por redes de varejo, bibliotecas e sistemas gerais de catalogação, tornou-o imprescindível para qualquer publicação... A sequência é criada a partir de um sistema de registro utilizado pelo mercado editorial e livreiro em todo o mundo. Ela é composta de 13 números que indicam o título, o autor, o país, a editora e a edição de uma obra. ... Graças a essa combinação, é possível individualizar e catalogar as informações particulares e específicas de cada uma das diversas publicações produzidas ao redor do planeta. Essa série numérica reconhecida em mais de 200 países permite o compartilhamento de metadados das obras em diferentes sistemas. Não é à toa que criação deste padrão representou um marco no mercado editorial, melhorando os processos de produção, distribuição, análise de vendas e armazenamento dos dados bibliográficos.”

Presunção de autoria. Mas incide no caso a presunção de autoria, que se consolida pela ausência de qualquer impugnação, como estipula a lei 9610/98 (Art. 12. Para se identificar como autor, poderá o criador da obra literária, artística ou científica usar de seu nome civil, completo ou abreviado até por suas iniciais, de pseudônimo ou qualquer outro sinal convencional. Art. 13. Considera-se autor da obra intelectual, não havendo prova em contrário, aquele que, por uma das modalidades de identificação referidas no artigo anterior, tiver, em conformidade com o uso, indicada ou anunciada essa qualidade na sua utilização.)

ISWC Composição musical. Já a composição musical Rosa de Hiroshima está registrada com ISWC (International Standard Musical Work Code), que é um código identificador exclusivo para obras musicais.

Assim sob o nºT-041.411.336-2 consta a seguinte obra musical, tendo como autores:

ISRC. Outro código de registro de obras musicais é o ISRC, “a abreviação de International Standard Recording Code, ou Código de Gravação Padrão Internacional. É um padrão internacional de código para identificar de forma única as gravações. O ISRC é fixado no fonograma ou no videofonograma durante a pré-masterização para proporcionar o intercâmbio de informações e simplificar a sua administração", conforme está no site da Abramus.

Então a composição musical de Vinicius e Conrad tem várias interpretações registradas, os fonogramas, cada uma com um ISRC próprio (pode ser ao vivo, por outros intérpretes ou grupos, etc.).

A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica

Autoria e titularidade. Com o falecimento de Vinícius, seus direitos são geridos pela VM Cultural , que tem a titularidade da obra. Então autor é a pessoa física criadora da obra (art. 11, da lei 9610/98) e titular é aquele para quem são transferidos os direitos patrimoniais da obra; o direito moral, que vincula o autor a obra será sempre de quem a criou, mas os patrimoniais podem ser transferidos de modo que a titularidade seja de terceiro, que não o criador.

O registro musical também não é obrigatório pela lei, mas como a gestão da execução musical é muito mais complexa do que do mercado editorial, existem esses registros internacionais para facilitar o controle e arrecadação dos direitos decorrentes de ao menos duas fontes diversas : (a) o da venda das obras, cds, etc., e (b) comunicação ao público, que pode se dar pela sua execução pública, em shows, rádios, etc.

Direitos autorais sobre a composição. Como visto no ISWC acima, quando da execução musical Gerson Conrad recebe metade como autor da melodia e os representantes de Vinícius recebem a outra metade pela autoria da “letra”.

Lei japonesa de direito autoral. E já que estamos falando de Japão, curioso notar que a lei de direito autoral daquele país tem dispositivo muito semelhante ao que foi transcrito acima, da lei brasileira, sobre a presunção de autoria da obra, por quem a publica como seu autor:

Artigo 14. Uma pessoa cujo nome ou apelido (doravante denominado "nome verdadeiro") ou cujo nome comum, abreviação ou outro substituto do seu nome verdadeiro (a seguir denominado "pseudônimo") seja indicado como nome do autor de forma habitual no original de seu trabalho ou quando seu trabalho é oferecido ou disponibilizado ao público, presume-se ser o autor desse trabalho.

Section 2 Authors (Presumption of authorship)

Article 14. A person, whose name or appellation (hereinafter referred to as "true name"), or whose generally known pen name, abbreviation or other substitute for his true name (hereinafter referred to as "pseudonym") is indicated as the name of the author in the customary manner on the original of his work or when his work is offered to or made available to the public, shall be presumed to be the author of that work. (Copyright Law of Japan)

Direitos Conexos. Ainda pode ser lembrado que, como intérpretes da obra musical, os Secos & Molhados ainda receberam, e recebem, valores a título de direitos conexos, isto é, aqueles que, sem serem dos autores, pertencem a quem acrescenta valor à obra, executando-a ou interpretando-a.

E essa foi a mutação jurídica sofrida pelo poema de Vinicius, que agregado a uma melodia resultou em outro produto artístico, uma composição musical.

Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

Em tempos de pandemia, que supera a retomada de ameaças internacionais baseadas na posse de tecnologia e arsenal atômicos por parte de vários países, o alerta sobre a Rosa é necessário, pois em breve chega o mês de agosto, que também marca o triste episódio abordado por Vinicius. (A transcrição da letra foi feita para fins de esclarecimento e portanto permitia pela lei de direito autoral brasileira).

Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO. Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida aborda os reflexos jurídicos das novas formas e hábitos de transmissão de informações e de conhecimento. De forma coloquial, pretende esclarecer o mercado editorial acerca dos direitos que o afetam e expor a repercussão decorrente das sucessivas e relevantes inovações tecnológicas e de comportamento. Seu e-mail é gmapublish@gmail.com.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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