Daniel Benchimol: 'a inteligência artificial é uma tecnologia bastante incômoda'
PublishNews, Brisa Espinheira, 05/09/2025
Editor, consultor editorial e diretor do Proyecto451 comenta possibilidades de transformações no mercado editorial a partir das novas tecnologias

Daniel Benchimol no durante o 4º Encontro de Editores, Livreiros, Distribuidores e Gráficos | © CBL
Daniel Benchimol no durante o 4º Encontro de Editores, Livreiros, Distribuidores e Gráficos | © CBL
Em um momento de transformações aceleradas no mercado editorial, a inteligência artificial emerge como força tanto disruptiva quanto criativa. Para entender o impacto real dessa tecnologia, o PublishNews conversou com o argentino Daniel Benchimol, editor, consultor editorial e diretor do Proyecto451, uma consultoria especializada no tema.

“Quem tem um conhecimento técnico e utiliza as ferramentas de inteligência artificial pode explorar a criatividade em lugares muito novos. Estamos vivendo um momento de transição e de transformação muito grande, que nos desafia a todo instante”, defende Benchimol.

O diálogo buscou explorar como a IA está remodelando a criação, a autoria e os próprios fundamentos do trabalho editorial, investigando por que essa tecnologia é, ao mesmo tempo, incômoda e sedutora, e de que forma editores, tradutores e autores podem navegar por este novo cenário.

A entrevista foi realizada em agosto, num hotel no Guarujá, no litoral paulista, durante o 4º Encontro de Editores, Livreiros, Distribuidores e Gráficos, promovido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL). Benchimol participou do evento como palestrante.

PublishNews: Além das vantagens imediatas de economia de tempo e de custos — e considerando que a maioria dos detentores dessas tecnologias são entes privados — qual você considera ser a verdadeira contribuição das inteligências artificiais para as áreas criativas e, em especial, para o campo editorial?

Daniel Benchimol: Olha, a primeira coisa que quero dizer é que a inteligência artificial é uma tecnologia que eu definiria como bastante incômoda. Porque, de alguma forma, é feita de muitos elementos positivos e negativos que andam de mãos dadas e não podemos separar. Então, quando falamos do impacto da IA na criatividade, por exemplo, acredito que seja uma ferramenta muito potente. Quem tem um conhecimento técnico e utiliza as ferramentas de inteligência artificial pode explorar a criatividade em lugares muito novos. Estamos vivendo um momento de transição e de transformação muito grande, que nos desafia a todo instante e nos leva a perguntar o que nos faz ser realmente criativos. Há muitos elementos que tornam uma obra artística. Para mim, a melhor metáfora que existe é do que ocorreu quando a fotografia foi criada.

Quando você olha para o movimento que ocorreu na época, encontra muita crítica ao universo que a fotografia trazia. Diziam que não era arte, que as fotografias roubaria a alma e o espírito das pessoas e que tiravam o trabalho dos pintores. Afinal, naquele momento os pintores vendiam retratos. E, na realidade, se deu o contrário. Hoje sabemos que a fotografia é arte e que os artistas plásticos saíram de um mundo mais fotorrealista para um mundo muito mais abstrato. Acredito que vai acontecer algo assim: que a IA nos levará a outro terreno na criação, nos empurrará para que sejamos diferentes, e que será uma ferramenta potentíssima para se pensar nessa nova realidade.

Se a inteligência artificial se apoia em obras pré-existentes para criar novos conteúdos, até que ponto podemos falar em originalidade? E como isso impacta a noção de autoria no mundo editorial?

Bem, ainda vamos ter que discutir durante muito tempo a noção de autoria. Até agora, sempre compreendemos que um autor é uma pessoa humana, e todas as leis que existem a respeito continuam reafirmando isso. Uma IA não é autora de nada. É certo que ela leu tudo o que produzimos como seres humanos, mas absorveu o conteúdo que criamos numa base de dados. Ela não tem os livros, mas lembranças dos livros que leu. É muito difícil que uma IA reproduza por completo, do princípio ao fim, uma obra, mas sim, tem uma capacidade técnica que nós não temos e, então, pôde absorver muito mais conteúdo e pode gerar conteúdo que combine tudo isso. Mas o ponto chave, pelo menos com a tecnologia que temos hoje, é o que nós fazemos no momento de solicitar conteúdos ou trabalhar os conteúdos com a IA. E isso é o que vai declarar se somos ou não somos autores.

Ao meu ver, o que está ocorrendo, sobretudo nos EUA — e há muitos litígios que vão nessa direção, armando um quebra-cabeça —, é que estão tentando definir qual é o trabalho humano que há por trás da criação. Isso vai determinar se essa obra é minha ou não. Se o que eu faço é entrar no ChatGPT, descrever duas linhas e pedir que me escreva uma história de ficção científica e pronto, não posso declarar isso como uma obra minha, de nenhuma maneira. Mas se eu utilizo a IA para desenvolver os personagens, para questionar a trama que estou elaborando, para pensar novas ideias, para trabalhar sobre algum estilo específico e uso a IA como uma espécie de colega que me assessora, mas há uma cota minha de trabalho, claramente isso vai ser uma obra minha. O ponto central é que os autores sempre foram seres humanos e é a primeira vez na história que acontece algo desse tipo. É a primeira vez que temos máquinas que geram conteúdos.

Onde está o valor de um conteúdo? E se importa, me importa quem o tenha produzido e de que maneira o tenha feito. A inteligência artificial pode criar coisas novas, obviamente, dependendo das nossas diretrizes. Não é que a IA replique meramente o que aprendeu. Em algum ponto, há algo muito parecido ao que nos acontece como seres humanos. Ainda existe uma rejeição direta dos leitores em relação a um texto produzido com IA. Mas se não o avisarmos que ele nasceu através de um robô, provavelmente ele vai ler esse texto e não encontrará grandes diferenças com o que produz uma pessoa.

Nós criamos coisas novas a partir de todas as nossas vivências, da nossa experiência e dos textos que lemos. Mas a inteligência artificial também parte de uma base, de toda a biografia e tudo o que temos gerado como humanos. E, com essas informações, faz as combinações e as experimentações para criar novos cenários.

No campo editorial, a IA tende a reposicionar o editor: de curador de catálogos e textos para condutor de processos algorítmicos. Como você vê essa transformação no papel do editor?

Olha, independentemente de como eu a veja, conto para você o que está ocorrendo. Trabalhando com consultorias de empresas de tamanhos diversos, entendo que a inteligência artificial pode nos dar muita produtividade.

As equipes editoriais costumam ter recursos bastante escassos, e a inteligência artificial, neste sentido, nos proporciona ferramentas que nem sempre estiveram disponíveis. Entretanto, quando trabalho com as próprias equipes, com os editores, os corretores, os designers, os tradutores, há um nível de resistência muito grande a utilizá-la.

Há ceticismo de que as ferramentas não podem fazer a tarefa que “eu” realizo, que não têm a capacidade de fazê-lo. Ainda que você a apresente de maneira clara, existe uma negação quanto à sua performance, e, claramente, um temor pelo impacto disso no mercado de trabalho. As pessoas acreditam que, de alguma forma, estão preparando o terreno para a sua substituição.

Certamente, a inteligência artificial pode ter um impacto e vai ter um impacto laboral profundo, não somente na indústria do livro, mas em todas as indústrias.

Profissionais como revisores e tradutores lidam com nuances, estilos e sensibilidades culturais. Como você enxerga o impacto da inteligência artificial sobre esses trabalhos, que vão muito além da correção ou da literalidade?

O ponto é que a inteligência artificial vai ter um impacto muito grande no mercado de trabalho. Isto é algo um pouco inevitável. Obviamente que podemos nos queixar, podemos tratar de pedir ao Estado normativas ou certas regulações. Mas estamos falando de um impacto que é muito evidente. Por exemplo, na tradução: é muito evidente o impacto para o mercado.

Porém, é muito difícil pensar hoje em um profissional do mercado editorial que esteja isento de ter que realizar tarefas com inteligência artificial. Primeiro, não há nenhuma atividade editorial que possa levantar a mão e dizer "para mim a inteligência artificial não me vai substituir em nada". Já estamos vendo as mudanças na tradução dos livros.

As editoras estão traduzindo com inteligência artificial. Algumas contam e outras não, porque sabem que não é bom dizer publicamente, mas estão fazendo. Ainda é uma hipótese, mas acredito que vamos ter muito mais traduções. Muitas obras e muitos textos que não estavam sendo traduzidos e, possivelmente, não seriam traduzidos. Hoje, a inteligência artificial permite que isso aconteça. Além disso, não somente para as línguas dominantes, mas para qualquer outra língua, fazendo com que os textos circulem em muitas outras línguas. Isto, em princípio, é um aspecto positivo.

Obviamente, a tradução feita por humanos vai ser mais restrita e, sobretudo, a lugares muito específicos. Mas a tradução de um livro técnico provavelmente não exigirá um tradutor humano. Essa é uma realidade muito concreta. A IA pode fazer este trabalho muito bem e muito mais rápido, com custos muito mais reduzidos. Este fenômeno vai ocorrer em todas as áreas, não será particular ao mercado editorial.

Se chegarmos a um mercado dominado por conteúdos fabricados por plataformas, quem você acredita que sobrevive nesse ecossistema: os autores de renome, as editoras de nicho, os curadores independentes, ou algum novo ator que ainda não conseguimos imaginar?

Muitas das ferramentas de inteligência artificial generativas, que é de onde estamos falando, não estão sendo pensadas diretamente para os produtores de conteúdo, mas para os consumidores de conteúdo. Então, eu, leitor, vou ter a possibilidade de produzir os textos que queira ler, no formato que os queira ler e da maneira que os queira ler. E isso, acredito, é algo que ainda não estamos visualizando com clareza, mas que vai abrir um espectro completamente diferente de conteúdo e que, de fato, já começam a aparecer plataformas e ecossistemas que vão um pouco nessa direção.

Uma ideia de consumo personalizado: Vim aqui para São Paulo, uma cidade que não conheço e por poucos dias. O que faço? Compro um guia de viagem? Busco vídeos no YouTube? Ou digo à inteligência artificial que vou estar nestes dias nesta cidade, que tenho este tempo disponível, e ela monta um guia totalmente personalizado aos meus gostos, aos meus interesses, de acordo com meu orçamento, considerando ainda as questões de clima, buscando os programas que serão oferecidos. A partir daí, me gera uma versão textual, uma versão em áudio, uma versão em vídeo, e tenho uma experiência totalmente personalizada com base nas minhas necessidades.

Hoje já temos inteligências artificiais que permitem gerar conteúdos em uma velocidade muito grande. Então, nesse cenário, por exemplo, uma biblioteca que hoje investe dinheiro na compra de acervo de livros: tem sentido que compre esses livros ou tem mais sentido que tenha uma licença a um serviço de inteligência artificial que possa dar respostas e aprofundar em qualquer tema para os seus leitores? Certos consumos vão mudar muito. E imaginá-los com as regras de hoje, quando tudo está em processo de tantas mudanças, não sei, não me parece fácil.

[05/09/2025 10:33:10]