
No Grupo Editorial Alta Books, ela já é utilizada em uma série de tarefas editoriais (bem como no marketing e na administração): mapeamento de tendências de leitura; revisão técnica preliminar; checagem de coerência textual; aprimoramento de metadados; apoio à curadoria, a atividades técnico-operacionais de baixa complexidade e a análises de mercado. “Os usos são muitos. Mas é sempre tudo feito com supervisão humana, de editores e revisores, para garantir qualidade, ética e respeito à autoria e à criação”, diz o publisher da casa, J.A. Ruggeri.
Em julho deste ano, a plataforma de autopublicação Clube de Autores colocou no ar serviços de edição e análise de obras literárias 100% baseados em IA. A ferramenta realiza uma leitura completa do manuscrito e entrega uma versão editada e comentada com sugestões sobre clareza, coesão, concisão, estrutura textual, ortografia e gramática. Sem intervenção humana. “Aplicar inteligência artificial no processo editorial não é simples: exige um foco intenso no desenvolvimento, uma engenharia de prompts e uma estrutura de interfaces que, no nosso caso, levou mais de um ano para ficar pronta”, conta o CEO Ricardo Almeida. “Quando bem estruturada, no entanto, a aplicação permite um ganho de escala sem paralelo.” Entre julho e outubro de 2025, as ferramentas do Clube executaram 458 análises críticas, 569 edições de livros e 140 traduções.
Por outro lado, há muitos profissionais preocupados com esse novo cenário na indústria livreira. O escritor e editor Felipe Franco Munhoz é um deles. Autor conhecido por incorporar em seus livros técnicas de diferentes gêneros literários, ele argumenta que, em obras de arte, os processos criativos são parte integrante do produto final. “Quando observo determinado resultado, estou observando, também, a técnica empregada pelo artista e o contexto histórico, social e político em que aquele trabalho foi elaborado. E, sobretudo, admirando o fato de que uma cabeça específica — o talento, o exercício, a repetição, as falhas — foi capaz e responsável por imaginar, conceber, polir”, diz. “Qual é o sentido de uma criação artística automatizada? Como pode interessar a consumidores apenas o resultado final, sem todos os elementos humanos que deveriam estruturá-lo?”
Da Feira do Livro de Frankfurt à de Pequim, passando por empresas e eventos do ramo nos Estados Unidos, no Brasil e em qualquer canto familiarizado com a produção editorial, profissionais e especialistas estão dedicando parte do seu tempo e energia intelectual para encontrar caminhos éticos e seguros que deságuem no bom uso da IA. No horizonte, são muitos os desafios, os riscos e as oportunidades.
Cenário
Quase metade dos profissionais da indústria do livro nos EUA e no Canadá utiliza ferramentas de inteligência artificial no trabalho, mas 98% dizem ter e enumeram preocupações significativas relacionadas ao uso, segundo pesquisa recente do Book Industry Study Group (BISG). Não há dados do tipo sobre o retrato brasileiro, mas um estudo do Ipsos e do Google, realizado em 21 países, mostrou que, em 2024, o Brasil ficou acima da média global na utilização de IA generativa. Cinquenta e quatro por cento dos brasileiros afirmaram usar, enquanto a média global foi de 48%.
Nas universidades mundo afora, o campo de estudo sobre a relação da inteligência artificial com o setor editorial ainda está em fase de consolidação. Longe de ser um nicho técnico, a área emerge como um domínio interdisciplinar, alimentado por uma convergência de saberes da ciência da informação, das humanidades, do direito, da economia e das ciências sociais, entre outros. Por exemplo: um estudo publicado em 2024 na revista Science Advances, por pesquisadores de universidades do Reino Unido, examinou o impacto dos modelos de linguagem (LLM) na produção de contos. Alguns dos autores envolvidos no experimento receberam, dos modelos de IA, ideias para criar suas histórias. O acesso aos insights resultou em contos avaliados como mais criativos e mais bem escritos. Em contrapartida, o grau de similaridade entre eles foi maior na comparação com os pensados e redigidos exclusivamente por humanos. Os resultados sugerem um aumento na criatividade individual, mas uma diminuição no potencial coletivo.
Ao longo deste ano, um caso nos EUA ganhou repercussão global. Um grupo de autores processou a startup Anthropic, uma das principais concorrentes da OpenAI (criadora do ChatGPT), sob a acusação de usar livros pirateados para treinar o chatbot Claude. O caso rendeu o maior acordo de direitos autorais da história. Conforme se noticiou, a empresa teria de pagar US$ 1,5 bilhão ao coletivo de escritores. Num posicionamento que, em alguma medida, agradou aos dois lados da contenda, o juiz William Alsup avaliou que livros (não pirateados) protegidos por direitos autorais podem ser utilizados para treinar sistemas de IA, o que configuraria uso justo; porém, considerou que a Anthropic manteve em seus arquivos mais de 7 milhões de obras pirateadas, violando o direito de autores.
Esse conceito do direito americano — o “fair use” — permite, sob certas circunstâncias, a utilização de material protegido por direitos autorais sem a necessidade de autorização ou pagamentos. Na prática, o entendimento é de que o modelo de inteligência artificial faria o mesmo que uma pessoa ao “ler” um livro, ou seja, absorver e interpretar as informações. Ou criar algo novo a partir do original. Autores e editoras nos EUA contestam. E processos semelhantes estão em andamento no sistema judiciário do país, contra empresas como a Microsoft e a OpenAI. No Brasil, a Folha de S.Paulo também processou a criadora do ChatGPT por uso indevido de material do jornal para treinar seus modelos de IA.
Desde maio, a Câmara dos Deputados analisa o Projeto de Lei 2338/23, já aprovado no Senado, que regulamenta o uso da inteligência artificial no Brasil. Além de proteção a direitos fundamentais (como proibir o uso de sistema de armas que podem atacar alvos sem intervenção humana), o PL também trata de direitos autorais. Pelo texto, conteúdos protegidos poderão ser utilizados livremente por instituições de pesquisa, de jornalismo, museus, arquivos, bibliotecas e organizações educacionais — previsão criticada pelas entidades do livro. Ainda assim, o material precisa ser obtido de forma legítima. O projeto é analisado por uma comissão especial e em torno dele têm sido promovidas audiências públicas com diferentes atores da sociedade.
Impactos no mercado
Um dos consultores mais requisitados quando o assunto é IA e o setor do livro no Brasil é José Fernando Tavares, fundador da Booknando, empresa especializada em publicações digitais, e da Volyo Audiobooks, focada na produção de audiolivros. Para ele, neste momento as empresas precisam levar em conta, principalmente, os seguintes fatores básicos: é preciso investir em formação profissional; há oportunidades de negócio tanto para aprimorar processos editoriais como para criar ferramentas; e já estão disponíveis plataformas que protegem o conteúdo, a privacidade e os direitos autorais — desde planos pagos a programas com código aberto (open source), passando por aplicações que podem ser instaladas em computadores comuns e não precisam nem de acesso à internet.
Outra dica para as empresas é implantar uma autogovernança sobre o assunto. A ISO 42001, por exemplo, é uma norma internacional sobre funcionamentos básicos, que podem ajudar a tomar decisões, fazer escolhas éticas e mapear riscos e formas de utilização. Também atenta à “nova ordem”, a comissão de Inovação da Câmara Brasileira do Livro está desenvolvendo um guia de boas práticas para a gestão de IA, como, por exemplo, verificar os termos de uso.
Trabalhar com protocolos rigorosos de segurança da informação é, segundo Ruggeri, diretriz na Alta Books. “Nossos sistemas passam por auditorias periódicas e todos os dados sensíveis — de autores, leitores, parceiros e colaboradores — são tratados com máxima confidencialidade e restrição de acesso. Em um mundo de hiperexposição, a privacidade se transforma em ativo”, diz. De acordo com o publisher, o principal ponto de atenção está em manter o equilíbrio entre inovação e responsabilidade: “isso significa garantir que o uso da IA e dos grandes LLMs respeitem a propriedade intelectual e não substituam a criatividade humana, preservando a relação de confiança com colaboradores, autores e leitores”.
A substituição de humanos por máquinas é uma das questões mais preocupantes e polêmicas sobre o uso de inteligência artificial. A atenção, talvez, deva ser depositada sobre um aspecto mais simples: o trabalho da IA, por mais bem executado que possa ser, precisa ser avalizado por alguém de carne e osso. Daí a lógica que não fecha, segundo Tavares: se os jovens passarem a ter menos oportunidades de emprego, quem vai avaliar o que o robô fez? “Como alguém vai se transformar num bom profissional no futuro, capaz de fazer tal checagem, se não tiver sido um iniciante?”, questiona. Nessa equação, demitir pessoas, substituindo-as por um sistema desses, parece não ser inteligente.
Para a especialista em educação digital e economia criativa Paula Martini, o letramento em IA deve englobar tanto os aspectos técnicos quanto a compreensão do fenômeno em suas camadas econômicas, sociais, psíquicas e geopolíticas. Segundo ela, profissionais têm uma responsabilidade individual de estarem informados sobre o assunto, mas também é interessante que empresas ofereçam e conduzam treinamentos para seus colaboradores.
Martini reflete também a respeito dos efeitos do uso de IA sobre a criatividade. “A inteligência artificial não é neutra: carrega vieses, interesses e estratégias de poder que moldam a forma como vivemos e pensamos. No entanto, se os algoritmos influenciam escolhas e narrativas, a literatura segue como um dos espaços mais potentes de criação de mundos possíveis e de invenção de futuros desejáveis. Proponho buscarmos formas de deslocar a passividade diante das plataformas e de reivindicar a imaginação como ferramenta de resistência.”
Números — A IA no Brasil
- 82% dos brasileiros já ouviram falar sobre IA, mas apenas 54% dizem entender do que se trata;
- 42% temem que ela faça uso de seus dados pessoais;
- 41% apontam, como principais benefícios para a sociedade, melhoria na qualidade da educação e apoio para o avanço da ciência e inovação;
- 49% a percebem como uma ameaça ao emprego;
- 41% já souberam de algum caso em que a IA tenha substituído trabalhadores.
Fonte: Pesquisa sobre Consumo e Uso de Inteligência Artificial no Brasil, realizada pelo Observatório Fundação Itaú e Datafolha em julho de 2025.
*Matéria veiculada na segunda edição da Revista PublishNews (impressa), lançada em novembro de 2025, com tiragem de 10 mil exemplares e distribuição gratuita, tanto física quanto digitalmente (em breve). Quer contribuir financeiramente com o canal? Clique aqui.






