Luiz Schwarcz reflete sobre o ofício do editor e o mercado editorial: 'a qualidade da edição de texto no Brasil é espetacular'
PublishNews, Guilherme Sobota, 04/06/2025
Em entrevista ao PublishNews, editor e autor do recente 'O primeiro leitor' compartilha sua rotina como CEO da Companhia das Letras, opina sobre a Lei Cortez e sobre os desafios do setor

Luiz Schwarcz, editor e fundador da Companhia das Letras, autor do recente 'O primeiro leitor' | © Renato Parada
Luiz Schwarcz, editor e fundador da Companhia das Letras, autor do recente 'O primeiro leitor' | © Renato Parada
Em uma das 41 Feiras de Frankfurt que visitou durante sua carreira de editor, Luiz Schwarcz falou para a agente de José Saramago, sem pensar muito nas consequências, que o recente Memorial do convento tinha se tornado um dos seus livros favoritos de todos os tempos. O comentário foi a faísca inicial de uma relação que durou até morte do autor, a mais próxima do editor com um escritor estrangeiro. Anos depois, em um evento no Rio de Janeiro, cidade na qual a obra de José Saramago teve ampla circulação ainda em estágios iniciais da sua carreira, durante uma sessão de autógrafos na tradicional livraria Timbre, uma leitora dava presentes, abraçava e beijava o escritor português. “Assim que a cena terminou”, escreve Schwarcz, “Saramago me chamou de lado e, entre emocionado e assustado, disse: ‘Luiz, essa gente vai me matar de amor’”.

A história está no recém-lançado O primeiro leitor – Ensaio de memória (Companhia das Letras), livro no qual o editor, fundador e CEO da Companhia das Letras repassa a sua vida profissional, propondo reflexões sobre o ofício de lidar com o texto, intercalando-as com pequenos perfis de personagens que marcaram sua trajetória de mais de 40 anos no mercado editorial: de Caio Graco Prado, seu primeiro chefe e mentor, até Saramago e Jô Soares, passando por nomes como Paulo Francis, Susan Sontag, Rubem Fonseca e Jorge Zahar.

Na introdução ao livro, Schwarcz conta que primeiro pensou no volume como uma reunião de cartas fictícias, mas logo mudou de rumo, em direção aos perfis memorialísticos agora publicados. Nos capítulos ensaísticos, explica, buscou “textos leves e despretensiosos”, cuja origem está em artigos que publicou no blog da Companhia das Letras em 2016 para celebrar os 30 anos da editora – que no ano que vem completa mais uma década. O tom das ponderações sobre o ofício do editor é sempre discreto: em mais de um momento, aparecem palavras como “invisível”, “modéstia” e “silêncio” relacionadas ao fazer editorial – especialmente na lida com o texto. A partir disso, o editor passa a contar como, quando estudava administração na FGV, arranjou um estágio na editora Brasiliense, e como se desenvolveu sua carreira desde lá, detalhando o crescimento da Companhia das Letras, sua participações nas feiras e eventos internacionais, entre outros diversos assuntos.

Schwarcz recebeu o PublishNews na sede da Companhia, no bairro do Itaim, em São Paulo, para uma conversa sobre o livro e sobre o mercado editorial brasileiro. Opinou sobre a Lei Cortez e falou sobre o estado atual da empresa, compartilhou sua rotina como CEO da maior editora do país, e estendeu algumas das reflexões sobre o ofício do editor em si.

PublishNews – Qual a sua rotina hoje como CEO da Companhia das Letras?

Luiz Schwarcz – Eu não venho todo dia para editora desde a pandemia, mas sim umas três vezes por semana, quatro. Às vezes venho e fico meio período. Trabalho para monitorar as coisas que estão acontecendo, para mentorar jovens, para discutir títulos que vamos publicar, ofertas que vamos fazer, capas, que é uma área de que gosto muito. Às vezes leio originais aqui, mas muito pouco. Tenho reuniões de diretoria, uma delas é online, outra é presencial. Tenho uma reunião dos editores, todos os editores de todos os selos, na qual é facultado a qualquer pessoa da editora participar, principalmente das equipes de marketing e vendas. Nessa ocasião, discutimos os livros que estamos lendo, mas antes disso faço uma pequena preleção sobre o que aconteceu na semana, sobre algum assunto importante do mundo editorial. Outro momento fixo é a reunião de marketing e comercial, toda segunda de manhã, da qual eu participo. Essas são online. Eu me envolvo com as decisões estratégicas, cuido da relação com o editorial e com a arte, que são os departamentos ligados diretamente à minha pessoa, mas participo das conversas de produção, administração do catálogo, etc.

Qual é a parcela do seu trabalho voltada para o grupo internacional?

É pouco. Tenho uma reunião mensal com todos os CEOs e tenho viagens. Eu faço duas viagens por ano para os EUA, além de algumas feiras, mas, no meu dia a dia, entra pouco. Eles recebem relatórios financeiros todo mês, mas não sou eu que faço.

Ano que vem a editora vai celebrar 40 anos.

Estamos começando os preparativos, mas não tem nada ainda que possa ser anunciado. Acho que vamos fazer um barulho.

Qual é a situação atual da empresa na sua visão?

A situação atual está muito sólida, muito boa. Nós temos 19 selos. Tivemos anos extraordinários no período da pandemia, o ano passado não foi um ano bom. Praticamente não houve compra governamental no ano passado, e as vendas ao governo geralmente representam em torno de 9 a 10% do nosso faturamento. Esperávamos vender R$ 40 milhões, vendemos R$ 4 milhões. É grave, mas talvez seja corrigido esse ano, pelo menos estão prometendo. Até o presidente da República continua se envolvendo, manda perguntar se há algum problema, mas a máquina não opera.

Como o processo de fusão com a Penguin Random House transformou o trabalho para você e para as outras pessoas da empresa?

O momento do que eles chamam de "merger", a fusão, é um momento trabalhoso. Para estabelecer as rotinas comuns, buscar as sinergias e tal. Depois, não me afeta em nada, só que eu acompanho um selo a mais. Mas em termos da rotina, não afeta em nada. Porque eu não estou também na parte administrativa. Eu acompanho o que está acontecendo nessa área, mas eu não estou à frente. Então, vida que segue, normal.

A participação nas feiras internacionais, por exemplo? Com o tempo, a relação vai se transformando?

É difícil. Eu fui a 41 Feiras de Frankfurt, sem contar Londres. Não tenho mais paciência para ficar muito tempo. Mesmo assim vou quase todo ano. No começo eu gostava, mas mais pelo deslumbre. Depois, esse deslumbramento murcha, quando se enxerga o lado exageradamente festivo e narcisista. Não que as pessoas estejam sendo falsas no sentido de não gostarem e fingirem que estão gostando, mas é que aquela festa é um pouco exagerada. Hoje em dia, quando vou, cuido mais dos autores brasileiros. Como consegui uma entrada muito boa, meu nome tem algum reconhecimento, deixo os meus editores cuidando das compras – a não ser quando fico sabendo de algum compra grande, uma disputa, alguma coisa assim, quando delibero junto com o editor –, e fico ocupado em vender os autores brasileiros para as editoras estrangeiras. Essa é minha Feira.

Com José Saramago | © Denise Andrade / Companhia das Letras
Com José Saramago | © Denise Andrade / Companhia das Letras
No início da história da Companhia das Letras, quem eram os principais clientes?

Saraiva, Siciliano, e mesmo a Cultura, que mesmo antes de virar rede era a livraria isolada que mais vendia os livros da Companhia das Letras. Depois entramos em programas governamentais, e o governo virou um dos grandes clientes. Depois quando a Saraiva comprou a Siciliano, chegava o números, eu não lembro de cabeça, mas números altos de share de mercado. A Cultura tinha 9%, a Saraiva tinha 20%, algo assim.

Atualmente, existem muitos agentes do mercado editorial que reclamam muito de um suposto monopólio da Amazon. A Amazon nega, diz que não tem monopólio.

Ter uma livraria apenas com 50% no mercado, é muito. Acho que em nenhum país do mundo a Amazon é tão grande. Nos EUA não chega a isso. Então, isso é uma questão mesmo muito difícil de resolver. Nunca houve um um player que foi tão forte assim.

O que você pensa sobre a Lei Cortez?

Ela tem pontos positivos, porque é necessária a defesa das livrarias, e ela tem desafios, porque de alguma forma o preço do livro novo vai subir. Como é só na novidade, é menos grave. As livrarias teriam que ter uma aparelhagem de venda online melhor do que elas têm atualmente para poder atingir parte desses leitores que estão sendo atendidos hoje principalmente pela Amazon. Então, sou favorável [à Lei], mas penso que tem que ter um outro trabalho também. Porque as livrarias são fundamentais para o comércio de livros, elas não podem acabar, elas são pontos culturais, local de encontro. Na livraria, uma pessoa entra para comprar um livro e acaba vendo outros, na venda online isso existe menos. Então, acho que a Lei tem pontos muito positivos, mas é preciso também uma contrapartida dos livreiros.

No capítulo sobre o Jô, você fala de uma tentativa de aproximação com as entidades de classe, a partir de um de um projeto que acabou não dando certo.

Foi uma ideia minha para o Jô ter um programa sobre livros na TV, com um investimento das entidades. Era um programa pequeno, de 10 a 15 minutos por semana, no qual ele recomendaria um livro, seria o “Orelha do Jô”. Eles ouviram o Jô e depois de um tempo falaram: "Ah, não dá para fazer porque ele vai favorecer os livros da Companhia”. Ele nem tinha sido publicado por nós ainda. Foi ofensivo. Pensar que uma pessoa da idoneidade dele poderia fazer algo assim. Nunca mais pus o pé numa reunião das entidades. Mas a editora está sempre representada.

Você menciona no livro que o mérito do editor de texto é sempre indireto e remoto, há uma obrigação de se tornar invisível, de exercer a modéstia, como fatores fundamentais para esse trabalho. Ao mesmo tempo, há menções a trabalhos como dos editores americanos, como Max Perkins e do Gordon Lish.

A qualidade da edição de texto no Brasil é espetacular. As pessoas em geral falam: "Ah, não é como nos Estados Unidos”, mas isso é colonialismo. Porque nos Estados Unidos houve a era de ouro dos editores, mas agora não é uma verdade generalizada. Há uma competição muito grande por autores. Os autores mais disputados, que não são os jovens que foram descobertos, eles ficaram fortes na relação política com os editores. Então, eles mostram primeiro o original para os seus agentes literários. Os agentes propõem mudanças e muitas vezes eles já chegam no editor sem disposição de mudar o texto. Mas o agente literário não é editor. Por outro lado, como eu disse, há editores americanos espetaculares. Na Europa, é muito irregular a qualidade dos editores de texto. Acho que aqui é bastante bastante bom.

Qual é a função do editor no trato específico com a linguagem? Porque atualmente esbarra até numa discussão política.

Há sempre desafios no uso da linguagem, senão a literatura não teria graça. O trato com a linguagem é o coração do trabalho do editor, é a linguagem que vai unir os dois polos, o escritor e o leitor. Então, o editor busca uma linguagem muito especial, ouvindo de dois lados. A linguagem que está presente no livro e, de alguma forma, é preciso simular uma escuta futura do leitor. Então, é um caldeirão de linguagens, em que é preciso entrar numa e sair para a outra: é tentar entender o que está por trás daquele livro, se faltou alguma coisa, se uma parte precisa mudar, tudo o que já estava de certa maneira no livro, mas o escritor não viu. Depois, essa receita precisa ser apresentada para outra pessoa, que vai lidar com essa linguagem. É por isso que eu chamo de intermediário. Poderia dizer que nós somos intermediários da linguagem.

É possível ensinar isso?

Sim, mas eu aprendi com a prática. Eu não acompanho muitos cursos de editoração.

Ainda pensando nesse aspecto do ensino, você escreve que talvez no início da editora você tenha deixado um pouco de lado o papel de mentoria com as pessoas que trabalhavam com você.

As pessoas vinham trazer um problema, e em vez de eu devolver assim: "O que você acha?", eu falava: “vamos fazer isso”. Essa pergunta geraria um diálogo mais profícuo, mas eu tinha ansiedade para resolver. Então, no começo do meu trabalho, penso que não dei o espaço que deveria ter dado para as pessoas trabalharem comigo.

Isso foi mudando ao longo dos anos?

Foi. Tenho certeza.

Você escreve que no início da sua carreira outros editores tinham uma espécie de rusga porque te consideravam um divulgador de livros melhor do que um editor. Por que isso aconteceu?

Porque de certa maneira havia um preconceito sobre divulgar os livros. Na Brasiliense, essa preocupação com a divulgação já existia, mas ao mesmo havia uma certa má vontade, ou descrença. A gente ouvia dizer que se saísse uma resenha no jornal, o leitor não precisaria comprar o livro, porque numa festa ele já saberia usar a história numa conversa, qualquer coisa assim. Mas nós mudamos isso. O que não significa que eu não atuava na edição. Minha principal atuação era na edição dos livros, mas era muito importante fornecer para a imprensa provas, por exemplo, não se fazia um trabalho anterior com o autor para ver se estava disponível para dar entrevista, entre outras questões. Então, acho que com isso nós conseguimos uma atenção da imprensa, mesmo na Brasiliense, muito maior do que era o padrão. E algumas pessoas maldosamente quiseram atribuir o sucesso a isso. Era um fator do trabalho, mas os outros não são menos importantes e alguns talvez até mais importantes. Se você não tem um livro bom, não adianta fazer a divulgação.

Como a sua relação com a imprensa foi se transformando nessa trajetória? Com o jornalismo de livros e também com a crítica literária.

No começo era tumultuoso. Porque eu via como se aquela crítica fosse a mim também. Eu queria proteger os autores. Fiquei furioso uma vez com o Wilson Martins, porque ele tinha criticado algum autor. Escrevi uma carta, mas aí eu compartilhava com o Jorge Zahar e ele falava: "Escreve e não manda". Mas hoje é boa a relação. Um problema é que há pouca crítica, hoje em dia tem mais jornalismo de literatura. Isso afeta os autores, porque não tem diálogo, e esse diálogo é muito importante para o trabalho do escritor. O editor também ganha com uma boa crítica.

[04/06/2025 11:20:00]