Nesta quinta-feira (26), às 19h, a Livraria Aigo (Rua Ribeiro de Lima, 453, loja 73, Bom Retiro – São Paulo / SP) recebe um evento sobre o livro, com algumas das pessoas responsáveis pela concepção da obra, incluindo o tradutor, Yonghui Qio, e a curadora da Bienal do Livro de São Paulo, Diana Passy, que realizou a leitura sensível. Além disso, estarão presentes a ilustradora Ing Lee (vencedora do Prêmio Jovens Talentos 2024) e a produtora gráfica Priscila Tioma.
O mundo dos livros vem ganhando destaque em produções culturais internacionais. No início de 2024, o filme Ficção americana — que integrou a lista de indicados a Melhor Filme no Oscar — estreou nos cinemas brasileiros e tinha como plano de fundo ironizar o comportamento do mercado editorial diante da obra de autores não-brancos, além de levantar uma discussão acerca da qualidade das obras consideradas de grande sucesso pelo público.
Erasure, livro de Percival Everett que inspirou o longa — ainda sem tradução no Brasil — figurou na lista dos 100 melhores livros do século XXI divulgada pelo The New York Times. Tanto este quanto Yellowface tecem críticas ao mercado do livro e tratam da perspectiva de autores não-brancos neste ambiente.
Enquanto que Ficção americana foca na questão da reação do público e dos profissionais do mercado editorial sobre um determinado trabalho, no novo lançamento a discussão gira em torno da figura do autor, e do debate sobre o que significa ser dono de uma narrativa.
Em entrevista para o PublishNews, o tradutor do livro, Yonghui Qio, fala que decidiu seguir com o mesmo título usado em Portugal, já que, em inglês, a obra é composta unicamente pela palavra Yellowface – que designa quando uma pessoa branca se passa por uma pessoa amarela. O termo é bastante usado no mundo do audiovisual anglófono, quando um ator branco é escalado para retratar personagens do leste asiático, por exemplo.
"Por outro lado, o título Impostora é uma solução bastante sagaz, porque faz o leitor se perguntar quando vê a capa: 'tá, mas é impostora do quê?'. Gosto também por se referir à síndrome do impostor, que é algo bastante sentido por minorias sociais, estar constantemente questionando seu lugar e suas conquistas. A Juniper [protagonista do livro] não sente muito isso, e o livro coloca um diálogo: quem é a impostora da história?", comenta o tradutor.
No livro, narrado em primeira pessoa, a escritora frustrada Jun reforça continuamente seu status inferiorizado quando se compara à Athena Liu – personagem que é colocada como uma grande rival profissional e pessoal – e que é uma pessoa de ascendência chinesa.
Depois de uma tragédia em que June presencia a morte de Athena, ela se encontra diante de uma decisão. O leitor descobre que Juniper pegou um manuscrito inacabado de Athena antes de deixar o apartamento da rival. Agora, ela ficaria diante da decisão de publicar ou não o novo romance. Juniper decide terminar e se apoderar do manuscrito com o objetivo de publicar a obra como se fosse inteiramente sua.
Para a editora e curadora Diana Passy, o livro captura realidades do mercado que discutem não apenas um "racismo educado", mas também um ambiente competitivo desregulado.
"É um livro que se vende como uma sátira, mas toda pessoa não-branca que já passou pelo mercado editorial reconhece que tudo que está lá é muito próximo da realidade", explica ao PublishNews. "A Rebecca conseguiu fazer um retrato muito detalhado do 'racismo educado', aquele que passa por baixo do radar de muitas pessoas porque não envolve violência explícita, nem palavras de baixo calão, e que acredita que se não ouve intenção de prejudicar, então tudo bem. A tensão da história se constrói não só pela angústia crescente da protagonista, que fica cada vez com mais medo que descubram o que ela fez, mas também porque você vai acompanhando o que se passa na mente de uma pessoa que está tão certa de sua bondade, que faz malabarismos mentais cada vez maiores para justificar por que ela não merece sofrer qualquer consequência por seus atos".
Ao mesmo tempo, para ela, o livro não fala só sobre a protagonista, mas sobre as diversas camadas dentro do mercado do livro que contribuem para que situações como essa aconteçam. "Num cenário tão precarizado, propenso a escolher 'queridinhos' para direcionar a pouca verba e atenção disponível, e descartá-los ao sinal da próxima novidade, não é surpreendente que os autores acabem se enxergando como concorrência. Nós estamos, sim, em uma realidade que faz muitos escritores acreditarem que o único jeito de ter sucesso é desbancando quem estiver sob os holofotes naquele momento. A June achar que a Athena estava 'roubando' as oportunidades que deveriam ser dela é uma ideia mais prevalente do que parece, e que só ganha tons mais sinistros quando adicionamos a questão racial", avalia Diana.
Um dos trunfos de Rebeca Kuang na construção do seu universo é colocar como narradora uma protagonista moralmente questionável, que se coloca alheia a problemas de suas atitudes e falas. "A hipocrisia passa despercebida para personagens como ela (June). Ela nunca pergunta qual o lugar dela naquela história, ainda que fique o tempo todo se afirmando como uma pessoa aliada daquelas causas", afirma Yonghui.
Na obra, o leitor acompanha sua protagonista se desdobrar para sustentar sua narrativa – e seu orgulho – na intenção de manter seu status social de escritora de sucesso, capaz de tornar-se imortal através da memória de sua obra.
É com muito sucesso que Kuang e Qio conseguem envolver o leitor na atmosfera brutal do tribunal das redes sociais. Ele brinca que "explorar o linguajar próprio do Twitter" foi uma das partes mais divertidas do processo.
Impostora: Yellowface também foi tema de um O que estou lendo, com a vencedora do Prêmio Jovens Talentos do PublishNews 2024, a ilustradora e capista Ing Lee.
"A trama é narrada por uma escritora que, desiludida por não conseguir se inserir no mercado editorial, não somente projeta suas frustrações em sua amiga, uma autora de ascendência chinesa que se encontra no ápice de sua carreira, como também se apropria de seu manuscrito após presenciar o acidente fatal da estrela", comentou a ilustradora. "Contudo, o tema da obra roubada trata-se de uma temática delicada envolvendo trabalhadores chineses durante a 1ª Guerra Mundial, sendo ela uma escritora branca. Partindo do termo 'yellowface' que, análogo ao 'blackface', trata-se de um conceito que Kuang explora ao trazer uma roupagem contemporânea às caricaturas que exotificam e desumanizam pessoas leste-asiáticas, tecendo diálogos com o Orientalismo de Said. Assim, o leitor é convidado a entranhar nos mais sórdidos pensamentos e conflitos da protagonista com o público e consigo mesma, que instrumentaliza seus privilégio de raça para receber validação, oscilando entre delírios persecutórios e manias de grandeza".
Um dos nomes mais populares da literatura de fantasia no mercado norte-americano atualmente, R.F. Kuang conquistou com este é seu primeiro livro de ficção contemporânea o Goodreads Choice Awards e, pelo segundo ano consecutivo, o British Book Awards de Livro do Ano. Ela também é tradutora de mandarim e bolsista da Marshall Scholarship, mestra em Filosofia na área de Estudos Chineses por Cambridge e em Estudos Chineses Contemporâneos por Oxford, atualmente cursa o doutorado em Literatura e Línguas do Leste da Ásia em Yale.