Como as discussões de 'Ficção americana' chegam ao mercado editorial brasileiro
PublishNews, Guilherme Sobota, 06/03/2024
PublishNews conversou com escritores e críticos literários no Brasil sobre o novo filme de Cord Jefferson, inspirado em um livro, que aborda discussões sobre a questão racial na literatura

Jeffrey Wright em 'Ficção americana': atuação indicada ao Oscar | © Claire Folger/Orion Releasing
Jeffrey Wright em 'Ficção americana': atuação indicada ao Oscar | © Claire Folger/Orion Releasing
Um dos indicados ao Oscar de melhor filme chegou ao Brasil diretamente ao streaming: Ficção Americana (American Fiction), do diretor estreante Cord Jefferson, está disponível desde a semana passada no Prime Video. Como o título sugere, o filme aborda, com humor, um debate relevante do mercado literário e editorial, não apenas nos EUA mas em diferentes partes do mundo onde a discussão racial está aquecida, como no Brasil. Uma das particularidades do filme é que o mundo editorial – entre editores e departamentos de marketing sedentos pelo próximo romance "urgente" – acaba sendo alvo preferido das piadas do filme. A cerimônia de entrega do Oscar ocorre no próximo domingo (10).

No filme, o personagem Thelonious "Monk" Ellison (um incrível Jeffrey Wright, indicado ao Oscar na categoria) é um escritor cansado das tentativas do mercado e da crítica de encaixá-lo na categoria "escritor negro". Em uma cena, ele discute com um nervoso atendente de livraria sobre a localização dos seus livros na estante – eles estão na seção de "Estudos Afro-americanos", embora sejam ficção, releituras de clássicos da literatura. O filme é baseado no livro Erasure (Graywolf), de Percival Everett, autor inédito no Brasil.

A discussão literária é conduzida pelo fato de que o personagem decide escrever – como uma provocação – um livro que atenda às "necessidades" do mercado, misturando diferentes clichês sobre a vida de pessoas negras nos EUA, e o assina com um pseudônimo, que seria um fugitivo da justiça. Para a incredulidade do autor, o livro se torna um sucesso editorial: "quanto mais burro eu tento ser, mais sucesso eu faço", diz ele a seu agente.

Mas o filme também aborda as relações familiares de Monk – um pai cuja morte trágica afetou os três filhos, uma mãe doente com necessidades de cuidados especiais, um irmão que enfrenta suas próprias questões existenciais. É na estrutura dessas relações que o filme parece oferecer as respostas aos questionamentos literários levantados pelo protagonista.

No podcast da revista The New Yorker, Cord Jefferson – que já escreveu para séries como Watchmen e Succession – contou que o filme (e o livro no qual é baseado) tem uma qualidade metaficcional tão grande que o próprio Percival Everett foi confundido com Jeffrey Wright num café em Los Angeles.

E no Brasil?

O PublishNews falou com profissionais do mercado editorial brasileiro para perguntar como as reflexões literárias e editoriais do filme podem repercutir por aqui.

A escritora Eliana Alves Cruz também gostou muito da qualidade metaficcional do filme. "Porque o personagem está ali numa luta, numa cruzada por uma literatura negra que não fique fixa nos estereótipos e naquilo que choca as pessoas brancas, majoritariamente, que fazem com que elas morram de pena. Ele quer sair daquela coisa do escravizado, do rapper, dos estereótipos. E aí ele resolve escrever um livro, meio na gozação, reproduzindo todos os estereótipos, e o livro é um sucesso", resume.

"Só que o entorno da vida dele é justamente essa fuga do estereótipo que ele quer na literatura. Ou seja, é uma família que não é retratada na ficção, nem no audiovisual, uma família de classe média com pessoas letradas, mas com muitos dramas riquíssimos e que não são retratados, às vezes, nas obras. São dramas que são substratos do racismo, mas que a gente não vê retratado na literatura de um modo geral", comenta.

"Você veja, eu escrevi três livros históricos, e os livros têm muita coisa. O Água de barrela, principalmente, tem história de uma família, uma história enorme, de 170 anos. As pessoas só conseguem enxergar os escravizados, o africano que tinha escravo, só conseguem enxergar aquela dor. Eles não conseguem ver a família que tem ali, que se manteve íntegra, apesar de toda aquela merda, não conseguem ver as riquezas da história, porque estão muito viciadas no estereótipo, e o livro não pretende ficar nisso. Pelo contrário, a ideia é mostrar uma história de pessoas comuns, com suas complexidades, mas que estavam lá naquele lugar de escravizado, sim, de subalterno, sim, porque essa é a nossa vida, né? Mas elas estão para além disso. Então, eu achei perfeito (o filme)", conclui.

O escritor e jornalista Ronald Lincoln, autor de Disritmia (Malê), também destaca o aspecto familiar da história. "Considero essa complexa trama familiar uma resposta do roteiro às críticas de Monk, o protagonista, contra a uma literatura negra estereotipada e que em sua opinião serve para atenuar o peso na consciência das pessoas brancas de classe média", comenta. "É uma boa provocação. Por outro lado, essa análise tem que ser feita com responsabilidade para não pender para a arrogância intelectual. Vejo o protagonista em outros autores e críticos contemporâneos que torcem o nariz para obras ditas populares, se sentem preteridos por elas nas prateleiras, e nem sequer leram, como foi o caso do Monk, em certo momento do filme", afirma.

Para a escritora, professora e pesquisadora de educação infantil Bruna Cristina, autora de Aimée e a coroa que não conseguia ver (Clube da Leitura) e outros livros, o filme apresenta mesmo situações cotidianas para escritores e escritoras negras.

"Principalmente no mundo literário infantil, sempre precisamos nos enquadrar em determinadas expectativas, o que muitas vezes limita nossa liberdade criativa. Por isso, me tornei uma escritora independente, buscando romper com essas barreiras e contar histórias autênticas e referências positivas que representem a diversidade e complexidade da experiência negra. É importante não apenas compartilhar nossas dores, mas também apresentar para as crianças histórias poderosas de superação, heróis e heroínas, reis e rainhas cujas vidas inspiram e transcendem os limites do que já foi apagado pela história", explica.

O professor, crítico e escritor Cristhiano Aguiar, autor de Gótico nordestino (Alfaguara) e entusiasta da atual temporada de filmes, considera que as discussões sobre o mercado editorial norte-americano delineadas no filme podem contribuir para o debate em outros países. "Para além disso, o filme levanta questões sobre o impasse: qual o papel social da literatura em sociedades plurais e desiguais como são a americana, por um lado, e a brasileira, por outro. Como conciliar liberdade artística e viabilidade comercial? Como fazer para que a literatura não se transforme somente em uma engrenagem de uma ação midiática feita para ganhar o máximo de dinheiro com o mínimo de qualidade possível? Como lidar com a importante demanda de novas vozes identitárias na literatura, sem transformar estas mesmas identidades em armadilhas que, a médio prazo, só reforçam estereótipos e discursos-clichês? Todas essas questões, presentes no filme, me parecem ser fundamentais para o mercado editorial brasileiro igualmente. American Fiction mais coloca essas questões do que as responde. E acerta ao colocar perguntas difíceis através da caricatura, do exagero cômico, mas também através da representação da paixão que a literatura desperta", comenta.

O filme está indicado em cinco categorias do Oscar, incluindo melhor filme, melhor ator, melhor ator coadjuvante (Sterling K. Brown), melhor roteiro adaptado e melhor trilha sonora (Laura Karpman). Uma oportunidade para editores, críticos, jornalistas e escritores – e leitores também, por que não – não apenas refletirem sobre questões em voga, mas também rirem de si mesmos.

  • Veja o trailer de Ficção Americana:

[06/03/2024 10:10:00]