Três Perguntas do PN para a roteirista Maria Camargo
PublishNews, Beatriz Sardinha, 19/06/2024
Maria adaptou obras de Milton Hatoum e Clarice Lispector e esteve presente no Rio2C​ para ministrar a masterclass 'Adaptação literária para o audiovisual com Maria Camargo'

Maria Camargo é roteirista e tem trabalhos desenvolvidos na televisão e no cinema. Ela é criadora das séries Rota 66, Dois Irmãos e Assédio, que foram finalistas do Prêmio APCA de Dramaturgia. Publicou pela Companhia das Letras o livro O medo e o mar, e pela editora Cobogó, o roteiro da série de Dois Irmãos, da Globo, e escreveu as adaptações das obras Correio feminino. Além de colaboradora das novelas Lado a lado e Babilônia, além de corroteirista do filme Nise, o coração da loucura. Maria esteve presente no Rio2C para ministrar a masterclass "Adaptação literária para o audiovisual com Maria Camargo" e respondeu a três perguntas do PublishNews.

PublishNews – De que forma você vê que os autores da literatura podem se beneficiar de adquirir maior conhecimento do mercado audiovisual e dos pitchings?

MC – Autores literários podem ter mais ou menos interesse em ver suas obras dialogando com o audiovisual. Alguns podem até não ter interesse nenhum – um livro é alguma coisa em si mesmo, uma obra que está terminada. Mas sim, num mundo onde o audiovisual domina, há grandes chances de que isso se torne – ou até que seja, desde o início – um interesse, um desejo ou até uma meta para o autor literário.

Nesse sentido, se há esse interesse, e se o autor quer ter mais controle sobre o processo, conhecer um pouco sobre o desenvolvimento criativo, sobre o trabalho dos roteiristas e também sobre o funcionamento do mercado audiovisual, pode ser interessante. Inclusive para ele entender o seu lugar nessa engrenagem, já que uma obra audiovisual é outra obra – uma obra que, ao menos idealmente, deve preservar sua independência, e não se tornar apenas um apêndice ou uma ilustração do livro.
São mundos muito diferentes, a literatura e o audiovisual, e a conversa entre eles tem muitas complexidades. Quando se trata de mercado, a diferença entre esses mundos também se confirma. Se um autor quer, de alguma forma, transitar entre eles, é bom entender minimamente as particularidades de cada um.

PN – Na sua experiência, qual o maior desafio presente no processo das adaptações literárias para o audiovisual?

MC – São muitos mas, só para início da conversa, aqui não nos serve a ideia de “tradução”. Literatura e audiovisual são mais do que idiomas diferentes – são linguagens diferentes. Ainda que haja um diálogo muito antigo entre audiovisual e literatura desde seus primórdios, e que a própria linguagem literária tenha sido influenciada pela linguagem cinematográfica desde então, adaptar uma obra é sempre algo inédito, é sempre começar do zero, da página em branco mesmo. Porque a página preenchida do livro (mesmo que seja uma escrita influenciada pelo audiovisual), é algo bem diferente do que a página escrita de um roteiro. Então, para preservar o mais importante, que é o espírito da obra, o olhar sobre o mundo que ela apresenta, é preciso recriar, desbravar caminhos que nunca foram percorridos antes. E que podem ser muito diferentes, até opostos, aos que o autor do livro percorreu.

Eu sinto esse início de processo como o começo de uma amizade, de um amor, de uma relação entre estranhos. Uma conversa que pode fluir com mais ou menos facilidade, se aprofundar mais ou menos, ter um desfecho mais ou menos feliz. Nunca se sabe, é sempre um risco.

PN – Há uma aproximação do mercado editorial com o mercado audiovisual? Enquanto criadora, como você enxerga a importância das histórias contadas nas obras literárias e a sua relevância dentro do mercado audiovisual?

MC Com certeza há uma aproximação, sim. Ainda que a gente considere que isso não é novidade, já que o audiovisual dialoga com a literatura desde o início de sua história, hoje, num mundo onde o mercado audiovisual é tão onipresente quanto instável, os IPs – que é como produtores costumam nomear as obras literárias - são tratados como bens valiosos.

Por um lado, as demandas dos produtores, diretores e autores audiovisuais, que são habitualmente grandes – estamos sempre caçando histórias, seja na vida real ou nos livros – agora parecem estar em ascensão quando se trata da literatura como ponto de partida para um filme ou uma série. Há a ideia de que ter um IP, ou seja, a propriedade de uma obra já escrita, torna seu desenvolvimento para o audiovisual um processo mais “seguro” do que o de uma história original. A ideia parece ser a de que, ao menos em princípio, assim se sabe melhor onde se está pisando. Creio que há nisso um medo de arriscar que dificulta inovações e que é, em si, também questionável, porque nada garante nada quando se trata de criação. Mas é isso: em um momento de muita instabilidade, com o medo dos riscos em alta, o aumento da demanda audiovisual por obras literárias acaba sendo algo bom, ainda que seja um dos efeitos de uma crise.

Do outro lado, os autores literários e seus agentes e editores enxergam na adaptação de uma obra possiblidades reais de um alcance muito maior, e mais lucrativo, para ela.

Agentes e editores oferecem, espontaneamente, seus livros a produtores e criadores audiovisuais; há profissionais e departamentos inteiros voltados para isso; direitos são vendidos antes mesmo que os livros estejam escritos – a forma como se vende um livro também está se transformando, estamos vivendo novas formas de negociação.

Para mim, pessoalmente, o interesse em adaptar uma obra acontece por outros caminhos. Sou criadora audiovisual mas, muito antes disso, sempre fui (e continuo sendo) uma leitora bem apaixonada. Não durmo à noite sem ler ao menos uma página de um romance ou conto, por exemplo. Então, como a literatura faz parte da minha vida e o audiovisual também, é natural que a conversa entre elas sempre tenha me interessado, desde que me tornei roteirista, ainda que por motivos mais passionais.

Mas independente dos motivos, seja como for, acho lindo que literatura e cinema continuem essa conversa antiga mas que segue se transformando com o tempo, se modernizando e se ajustando às demandas de seus mercados. E que acaba garantindo, mesmo quando todo mundo diz que não se lê mais, um lugar sempre presente para a literatura.

[19/06/2024 10:00:00]