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Uma livraria alemã em São Paulo
PublishNews, Leonardo Garzaro, 25/09/2023
Segundo a ANL, o Brasil tem 2.972 livrarias, 1.167 em São Paulo. Esta é a história de uma delas

Eu estava estressado. Vocês sabem como é. As contas para pagar, o revisor que atrasou um trabalho, uma capa que o autor demora em aprovar. Um livro para lançar em abril e que enroscou no capítulo dois. As páginas prontas transformadas em páginas amassadas, cada parágrafo com mais correções do que frases concluídas. Meu olho esquerdo tremia como se tivesse vida própria, dando sinais de que era hora de ir à praia, ao sítio, à casa da avó. Em suma, era preciso descansar.

Percebi que há pelo menos três anos viajo somente para participar de feiras literárias. Na última quinta-feira, saí para almoçar e o relógio do celular marcava 13h. Quando voltei, eram 13h13. Estava claro que eu sequer estava almoçando, mas atacando um prato de comida como se fosse um leão que finalmente pegou uma zebra.

Foi com esse espírito que entrei na Livraria Bucherstube, no Brooklin, em São Paulo. Me movimentando rápido, quase arranquei a porta, ao invés de abri-la com cuidado. Uma vez lá dentro, contudo, imediatamente me vi imerso em uma atmosfera de calma e tranquilidade, um ambiente de livros, para o qual meu ritmo estava completamente inadequado.

A livraria é uma casa adaptada. Está no local há 40 anos. Adoro lugares assim, onde ainda é possível notar a sala de estar, os quartos e a cozinha. A família que ali morou tomou outro rumo, os avós e pais falecidos, os filhos com suas vidas. Mas imaginem como é voltar à casa de infância e encontrá-la transformada em uma livraria? Um dos locais onde trabalhei se tornou uma livraria — achei mágico. Muito melhor do que outro, que se tornou um mercadinho de uma rede famosa. No local onde era minha mesa de trabalho, hoje vendem salame.

Bucherstube, em alemão, significa justamente isso. Livros e aconchego, um canto confortável para a leitura. Ao caminhar sem pressa entre as estantes, encontrei toda gama de livros em alemão, do desabafo do ex-príncipe Harry às obras de Marx e Engels. Eu havia imaginado encontrar traduções, aqui um Fausto traduzido pelo João Barrento, ali um Werther assinado pelo Mauricio Mendonça Cardozo. Nada disso. A livraria é dedicada aos alunos de escolas alemãs, aos estudantes do idioma e às comunidades alemãs que vivem em São Paulo. Nenhum livro em português.

Encontrei também uma imensa gama de objetos de decoração, que a vendedora me explicou serem importados da Alemanha. Peças natalinas feitas em estanho, com um livro que demonstra ao interessado o delicado processo de produção. Peças do folclore alemão, em porcelana. Tudo tão delicado, organizado, precioso que eu tinha medo de tropeçar e quebrar alguma coisa. O tipo de lugar onde não posso levar meus filhos!

Úrsula Hellner
Úrsula Hellner
Mas como uma livraria assim pode sobreviver? Era justamente essa a pergunta que tinha em mente quando encontrei a Úrsula Hellner, no segundo andar, a proprietária. Ante todas as notícias das dificuldades das livrarias, me perguntava qual o espaço de mercado para uma livraria de nicho. E, vale dizer, uma livraria que funciona há 65 anos! Qual a relação com a concorrência on-line? Como o surgimento dos marketplaces impactou o faturamento? E como o negócio começou? Desde que eu não tivesse pressa, todas as respostas estavam ali.

Úrsula me contou que veio ao Brasil pela primeira vez nos anos 1960. Ela morava na Alemanha, em Colônia. Havia conhecido uma jovem brasileira que lá estava para um intercâmbio. Adoraram-se. Encantou-se pelas histórias do Brasil que a amiga contava. Quando se formou em Pedagogia Social e Música Clássica, a família concordou com um ano de intercâmbio no Brasil.

A viagem de navio durou duas semanas. Por algum mistério relacionado ao transporte marítimo, vieram em apenas 12 passageiros no navio de carga. Enquanto muitos imigrantes se viam, na época, em navios superlotados, enfrentando problemas de higiene e falta de comida, ela teve sorte. Fala da viagem com um brilho no olhar, que intercala com o forte sotaque alemão e alguns "yah!" afirmativos.

Desembarcou em São Paulo e foi morar na família da amiga brasileira, uma família rica, com cinco filhos, que a recebeu bem. E, como nos romances românticos, ela e um dos filhos da família se apaixonaram e casaram, motivo pelo qual Úrsula ficou no Brasil. Foi trabalhar em uma escola alemã, como professora, e o um ano de intercâmbio se tornou dois, três, quatro...

Cinco anos depois da sua chegada, ela havia desistido de trabalhar como professora e procurava um novo emprego. Foi com a sogra visitar a Livraria Bucherstube, da qual a família era cliente. A sogra imaginou que, aos proprietários, interessaria ter como funcionária uma jovem alemã, com formação universitária, para atender à clientela especializada. Para sua surpresa, ao invés de a contratarem, eles ofereceram sociedade. Assim Úrsula se tornou proprietária de uma livraria no Brasil, algo que jamais havia imaginado.

Entre os anos de 1970 e 2000 o negócio foi bem, sobrevivendo aos altos e baixos do varejo brasileiro. Conhecemos as histórias: um credor que não paga, um fornecedor que não cumpre o prometido. Além dos assaltos. Como havia um segurança na porta, perguntei sobre o tema. Ela me confirmou que haviam sido assaltados algumas vezes. Mas assaltam livrarias?! "Yah!" Em uma das vezes, quando o assalto foi anunciado, os seus sócios, com medo, se trancaram no andar de cima, deixando-a sozinha com dois homens armados. Em outra, roubaram pouco, mas quebraram tudo.

Ela comprou a parte dos sócios originais e seguiu como única proprietária, dando ao negócio a sua cara. Tão logo a internet surgiu, criou o site da loja. Segue uma receita simples: não fazer dívidas, comprar à vista com desconto para maximizar a margem de lucro. Sem consignações. Comprar e vender, como no varejo tradicional.

E os objetos de decoração? Nos anos 2000, visitando a Alemanha, Úrsula percebeu que as livrarias estavam fechando. Em um dos países europeus com maior índice de leitores, as livrarias tradicionais baixavam as portas. Intuiu que não demoraria a acontecer a mesma coisa no Brasil. Decidiu então visitar algumas feiras, pensando em ampliar o catálogo de produtos à venda e assim diversificar o faturamento.

Em uma feira no Center Norte, em São Paulo, ela encontrou artigos de decoração em madeira fabricados na antiga Alemanha Oriental. Os séculos de tradição fabril estavam nas peças, que eram delicadas, de ótima qualidade, produzidas com bom material. Os expositores não queriam levar os produtos de volta para a Alemanha, como é comum nas feiras. Pagam o frete de ida e negociam o material no destino, para não pagar o frete de volta. Ela comprou todo o catálogo. Ajeitou-o na livraria como dava, perto da vitrine, para no dia seguinte organizar. E, no dia seguinte, ao chegar para trabalhar, havia uma fila de pessoas na porta, aguardando a abertura, interessadas nos objetos de decoração. "Ali me deu o clique", a Úrsula me contou, levando a mão à têmpora como se girasse uma engrenagem. Os objetos de decoração importados não apenas complementam o faturamento, como trazem para a livraria mais público, ajudando a venda de livros. E os livros trazem consumidores interessados nos objetos de decoração. Assim a engrenagem gira. E gira bem.

Ao final da nossa conversa, ela estava relaxada. À exceção das pessoas acostumadas a lidar com a imprensa, os entrevistados muitas vezes ficam tensos, pensando, enquanto respondem, no que iremos escrever, no que estamos anotando, se iremos escrever isso ou aquilo sobre eles. O segredo de uma entrevista é deixar o interlocutor tranquilo. Quando chegamos a esse ponto, Úrsula me contou que prefere Stefan Zweig ao Thomas Mann, que tem paixão pelo artesanato peruano, que foi aluna de Carl Orff, o compositor de Carmina Burana.

Lembrando da sua formação em música clássica, perguntei se ela ainda tocava. Neste momento, pela primeira vez, ela se mostrou orgulhosa. Colocou ambas as mãos sobre a mesa, e declarou: "Yah! Eu tenho um Steingraeber em casa".

Leonardo Garzaro é escritor, editor e jornalista. Paulista, nascido em 1983, fundou diferentes editoras independentes e editou dezenas de livros. Seu primeiro romance, o infantojuvenil O sorriso do leão, teve os direitos vendidos para editoras de seis países, com traduções para o inglês, espanhol, turco e árabe. Alguns de seus contos foram publicados na premiada revista norte-americana Literal Latin Voices. É consultor de literatura brasileira das editoras Interzona, da Argentina; Arlequin Ediciones, do México; e Corredor Sur, do Equador. Lançou em 2022 O guardião de nomes, que foi elencado como um dos melhores romances de 2022 pelo Suplemento Literário Pernambuco.

Tags: Livrarias
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