Chico Buarque retoma tradição do discurso literário na entrega do Prêmio Camões
PublishNews, Guilherme Sobota, 25/04/2023
Cantor, compositor e escritor recebeu o diploma com quatro anos de atraso numa cerimônia em Portugal, com a presença dos presidentes Lula e Marcelo Rebelo

Chico Buarque, ao centro, com o presidente Lula, ministra Margareth Menezes e o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo | © Ricardo Stuckert/TV Brasil
Chico Buarque, ao centro, com o presidente Lula, ministra Margareth Menezes e o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo | © Ricardo Stuckert/TV Brasil
Ao receber o Prêmio Camões de 2019 das mãos dos presidentes Lula e Marcelo Rebelo de Sousa, de Portugal, nesta segunda-feira (24), em Sintra, Chico Buarque retomou uma tradição também literária que há tempos não ressoava por aqui: o discurso marcante de um premiado.

Na sua fala, o escritor e compositor alfinetou o ex-presidente brasileiro – Bolsonaro havia se recusado a assinar o diploma do Camões, considerado o prêmio mais importante da língua portuguesa –, lembrou-se de seu pai, Sergio Buarque de Holanda, mencionou suas raízes brincando com a letra da própria canção ("meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano"), citou colegas, amigos e parceiros (Vinicius de Moraes, Raduan Nassar, José Saramago).

"Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula", disse Chico Buarque. "Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo".

O Camões é o mais celebrado prêmio literário da língua portuguesa e foi concedido a Chico Buarque em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro. O então presidente se recusou a assinar o documento e entregar o prêmio – uma parceria entre os governos de Brasil e Portugal – ao escritor, cantor e compositor. Na época, o artista já havia dito: "A não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo prêmio Camões".

A cerimônia desta segunda-feira também teve a presença do primeiro-ministro português Antônio Costa, do escritor moçambicano Mia Couto, da ministra da Cultura do Brasil, Margareth Menezes, e outras autoridades e artistas.

O presidente português destacou o lirismo e a poesia da obra de Chico e disse que o cancioneiro brasileiro divulgou e elevou a língua portuguesa tanto quanto a obra de Camões. Ele encerrou o discurso com uma paródia da música Meu caro amigo, gravada pelo cantor em 1976: “Meu caro amigo, me perdoe, por favor, por toda esta demora”, desculpando-se pelos quatro anos de atraso na entrega do prêmio.

Em sua fala, o presidente Lula disse que o convite para participar da cerimônia de entrega do prêmio, em Portugal, era para ele uma grande honra: “Para mim é uma grande satisfação corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos. A vasta contribuição da obra de Chico Buarque vai além de seus inegáveis aportes à riqueza literária da língua portuguesa e mostra que arte e cultura estão entrelaçados com a política e com nossos ideais de liberdade e democracia”, completou o presidente.

Leia abaixo a íntegra do discurso de Chico Buarque na entrega do Prêmio Camões.

"Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária.

Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade.

Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.

O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.

Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica.

Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.

Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de Prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde — sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.

Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido.

No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele Governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-Presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso Presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.

Muito obrigado".

Veja a cerimônia de entrega do Prêmio Camões 2019 em Portugal:

Prêmio Camões

O Prêmio Camões de Literatura foi instituído em 1988 com o objetivo de consagrar um autor de língua portuguesa que, pelo conjunto de sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua comum.

Em 2019, o júri justificou a escolha de Chico por conta de sua "contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa".

João Cabral de Melo Neto foi o primeiro brasileiro a ganhar o prêmio em 1990, seguido por Raquel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), Antonio Candido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012), Alberto da Costa e Silva (2014) e Raduan Nassar (2016). Silviano Santiago venceu o Prêmio em 2022.

[25/04/2023 09:20:00]