Annie Ernaux ganha o Prêmio Nobel de Literatura
PublishNews, Thales de Menezes, 06/10/2022
Autora que reinventou a escrita de autobiografias, a francesa de 82 anos tem obras lançados no Brasil pela Fósforo, como 'O acontecimento', 'A vergonha' e 'Os anos', e estará na Flip em novembro

Annie Ernaux | © Divulgação
Annie Ernaux | © Divulgação
A grande surpresa do prêmio Nobel de Literatura 2022 foi justamente a ausência de surpresa. A organização do prêmio não repetiu o hábito frequente de conceder a honra a autores pouco conhecidos pelo grande público. Primeira escritora francesa receber o Nobel, Annie Ernaux, de 82 anos, vive um momento de intensa popularidade, principalmente no Brasil, onde a Fósforo já lançou quatro de seus livros e, antes da Flip, deve lançar o quinto, O jovem.

Certamente a organização da Feira Literária Internacional de Paraty tem muito a comemorar. Ernaux é uma das convidadas do evento, de 23 a 27 de novembro. Agora, não resta dúvida de que será a grande estrela desta edição.

No comunicado oficial da premiação, a comissão do Nobel explica que concederam o prêmio a Ernaux “pela coragem e acuidade clínica com que desvenda as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal.” Esse argumento vem de uma peculiaridade incomum na obra da francesa. Seus livros poderiam ser considerados como volumes de uma grande autobiografia. Mas, em textos independentes entre si, ela conta em cada um a versão fiel, um tanto romanceada, de algum episódio de sua vida. Não é exagero dizer que a escritora revolucionou o gênero da literatura biográfica.

São vários os exemplos desse processo de investigação da própria existência. Os anos, publicado na França em 2008 e para muitos críticos sua melhor obra, foi finalista do International Booker Prize. Passeia por seis décadas de história, de vagas memórias dos efeitos da Segunda Guerra Mundial ao impacto do 11 de Setembro. Fica evidente o talento narrativo de Ernaux na naturalidade com que a autora entrelaça seu cotidiano, até os lances banais, aos grandes eventos no mundo. Mas, o tempo todo, o foco é reflexivo, é um livro sobre suas reações diante da história que corre.

O acontecimento, lançado originalmente em 2000, resgata um episódio turbulento em sua vida. Em 1963, a época uma estudante de 23 anos, a autora engravidou, numa época em que o aborto era ilegal na França. Ela percorreu sozinha um périplo muito difícil para a realização de um aborto clandestino. É uma obra contundente, em que Ernaux não escreve uma linha de pieguice. Ela consegue uma aparente distância fria dos fatos, mas descortina em várias passagens seus sentimentos mais profundos, sem nenhuma condescendência da autora Annie à personagem Annie.

Esse projeto de revelar pontualmente os momentos cruciais da própria biografia começou em 1983, com O lugar. O livro, focado no pai da autora, é uma mistura de memórias e análise sociológica. Ela usa a trajetória do pai para conduzir seu próprio caminho na observação das questões de classe. Ela voltaria à figura paterna em A vergonha (1997), no qual escreve sem sentimentalismo sobre um caso de violência doméstica do pai contra sua mãe, quando Ernaux tinha 12 anos.

O Jovem, que foi pulicado este ano na França e é o lançamento que ela divulgará na Flip, fala de um caso amoroso que a autora teve com um homem 30 anos mais jovem. É, talvez, o volume dentro desta revisão de sua vida que mais expõe os conceitos sociológicos da autora. Segundo a crítica francesa, é seu livro que dedica mais espaço às reações das outras pessoas e não dela mesmo.

Annie Ernaux já publicou 23 obras. No Brasil, O lugar, A vergonha, O acontecimento, Os anos e O jovem fazem parte do catálogo da editora Fósforo. Sua utilização da própria vida como fonte de suas obras se espalha também ao cinema. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa no próximo dia 20, vai exibir o documentário Os anos do super 8, que ela codirigiu com o filho, David Ernaux-Britot, editando cenas de filmes caseiros de sua família.

A autora francesa estava nas listas de possíveis vencedores do prêmio neste ano. A cada temporada, as casas de apostas no Reino Unido servem como termômetro para determinar o possível vencedor, embora muitas e muitas vezes a Academia Sueca surpreenda a todos. Neste ano, o britânico Salman Rushdie era a bola da vez, depois do atentado a facadas que sofreu nos EUA, do qual ainda se recupera fisicamente, mantendo-se afastado da imprensa. Mas os escandinavos não cederam a essa escolha, que teria sido certamente criticada por seu caráter emotivo.

E a grande piada do Nobel de Literatura continua. Trata-se do japonês Haruki Murakami, autor de obras célebres como Minha querida Sputnik, a trilogia 1Q84 e o recente Abandonar um gato, que começou a ser cogitado para o prêmio há quase 20 anos. Diferentemente de outros nomes que vêm e vão na lista habitual de favoritos, o japonês aparece firme em todos os anos, e o fato dele nunca ganhar já se tornou uma piada no meio literário. Provavelmente estará entre as apostas de 2023.

[06/10/2022 11:00:00]