A Bienal Internacional do Livro Rio 2019 tinha tudo para ser como foram todas as outras: grande público, grandes vendas (não o suficiente para alcançar o break-even, é claro), mas nada além de mais uma bienal. Eis que, na última quinta-feira (05), o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, resolve usar suas redes sociais para informar que estava censurando um livro presente em alguns estandes da Bienal, que chegou nesse ano a sua 19ª edição. A justificativa: a graphic novel Vingadores – A cruzada das crianças, que traz nas suas páginas a manifestação amorosa de dois personagens homens. Foi o suficiente para o prefeito dizer que precisava resguardar as crianças da “pornografia”.
A reação foi imediata. A declaração claramente homofóbica – que liga o beijo entre dois homens à pornografia – e o pedido de recolhimento do livro foram entendidos como censura. Os principais veículos de comunicação do País colocaram nas ruas suas equipes para entender o caso. A Bienal se tornou o centro das atenções e o público também se manifestou em favor da liberdade de expressão, de circulação de ideias e contra a censura.
Diante do ataque, a Bienal se posicionou firmemente dizendo que não baixaria a sua guarda e não recolheria os livros. Não que fosse preciso, afinal, em menos de 40 minutos desde a abertura da Bienal na sexta-feira, todos os exemplares já tinham sumido dos estandes: quem chegou antes, comprou e levou pra casa.
Mais do que à pressa, Gustavo Martins de Almeida, colunista do PublishNews e advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) entrou com mandato de segurança preventivo para evitar a cassação do alvará de funcionamento da Bienal. Na peça, o advogado evoca Goebbels, responsável pela propaganda nazista na Alemanha de Hitler: “Diante de uma cena, de um livro, comercializado com lacre, obedecendo ao que dispõe ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], deslancha-se operação de blitzkrieg para a prática inconstitucional de censura, a procura de conteúdo supostamente imoral, e ameaça-se com o fechamento de toda uma feira de livros”.
Os fiscais da Secretaria de Ordem Pública da cidade vão até o Riocentro, mas não encontram nada além de “muitos livros”.
Diante do ato claramente de censura, editores e autores resolveram contra-atacar. Os estandes de casas como a Todavia e Faro trouxeram para frente os livros de temática LGBT e teve até quem fizesse promoções, dando descontos nesses títulos.
Felipe Neto, autor campeão de vendas, ganhador do Prêmio PublishNews em 2017 e uma das vozes mais críticas à onda de conservadorismo que varre o país, resolve colocar em prática uma ação e compra 14 mil livros de temática LGBT; os embala em sacos pretos, cola uma etiqueta onde se lia "Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas" e distribui aos visitantes da Bienal no sábado.
O Tribunal de Justiça concede a liminar favorável ao pedido da Bienal. Na sua decisão, o desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes diz que “tal postura reflete ofensa à liberdade de expressão constitucionalmente assegurada”.
No entanto, a liminar foi cassada pelo presidente do TJ fluminense, Claudio de Mello Tavares, que no passado proferiu decisão em que dizia: “não se pode negar aos cidadãos heterossexuais o direito de, com base em sua fé religiosa ou em outros princípios éticos e morais, entenderem que a homossexualidade é um desvio de comportamento, uma doença”. Novamente os fiscais vão ao Riocentro e nada encontram.
No domingo, a disputa chega ao Supremo Tribunal Federal por duas vias distintas. A própria Bienal entra com o pedido e, em paralelo, a Procuradoria Geral da República também questiona a decisão do desembargador Mello Tavares. Os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes restabeleceram a primeira liminar concedida pelo TJ fluminense. De acordo com o nosso colunista, autor do mandado de segurança, “O Judiciário corrigiu o rumo dos direitos na Bienal, restabeleceu a liberdade de expressão, bem como afastou o risco de ser fechada a Bienal. O povo tendo acesso ao conhecimento, as editoras vendendo e os autores recebendo pelo seu trabalho".
E os autores se juntaram em manifestos em favor da liberdade de expressão e contra a censura. Em um vídeo autores como Pedro Bandeira, Laurentino Gomes, Thalita Rebouças, Raphael Montes, Otávio Cesar Jr. e Miriam Leitão recitam versos da música Apesar de você, de Chico Buarque. Cerca de 70 autores que passaram pela Bienal também assinaram um manifesto que diz que o “brasileiro não precisa de tutor. Precisa de educação para que cada um possa fazer suas escolhas com consciência e liberdade”.
Na coletiva de imprensa em que fez o balanço da Bienal, Marcos da Veiga Pereira, presidente do SNEL resumiu: “Fico feliz em terminar esse festival consagrando o valor que a Bienal tem e com a certeza de que o livro vai prosperar. Acreditamos muito no poder de transformação do livro e, por isso, tivemos convicção do que fazer e de que atitude tomar nesses últimos dias”.
"A Bienal é e continuará sendo plural. O maior evento de conteúdo do país não termina neste domingo. Ele seguirá com cada um que visitou ou trabalhou nesta edição histórica", destacou Tatiana Zaccaro, diretora da Bienal. "Esta Bienal também seguirá com aqueles que não puderam estar aqui, mas acompanharam nossos conteúdos e nosso posicionamento pela imprensa do mundo todo, pelas redes sociais ou em conversas com amigos. A partir de agora, quando você levar um livro para casa, estará levando a Bienal também", concluiu.
Balanço das editoras
As editoras reportaram bons resultados na Bienal. A Faro, por exemplo, já tinha programado o lançamento do livro Feitos de sol, de Vinicius Grossos, um dos autores da casa que escreve para o público jovem com a temática LGBTQIA+. O autor também acabou sendo convidado pela organização do evento para participar da Arena #SemFiltro para falar sobre Literatura Arco-íris, o que ajudou ainda mais na divulgação da obra. A editora estima que o estande recebeu a visita de mais de 30 mil pessoas, comercializando mais de 15 mil exemplares. Destes, 2.796 de temática LGBT. Os mais vendidos da Faro foram Homem de lata, de Sarah Winman, 1+1: A matemática do amor e O garoto quase atropelado, ambos de Vinicius Grossos.
Arqueiro e Sextante levaram para o seu estande um número recorde de autores do catálogo. No topo do ranking de mais vendidos das editoras está Thalita Rebouças, com o lançamento Confissões de uma garota linda, popular, e (secretamente) infeliz; Bráulio Bessa, que autografou Um carinho na alma; Fred Elboni e seu Coragem é agir com o coração; Augusto Cury com Inteligência Socioemocional; e Nathalia Arcuri, com o livro Me poupe!.
Para a Autêntica, o saldo geral foi positivo, apesar de não ter batido sua meta de vendas. “Acreditamos que uma série de fatores tenha influenciado neste resultado. Eles vão desde as dificuldades financeiras enfrentadas pelos brasileiros nos últimos tempos até o sentimento de insegurança que, infelizmente, o Rio de Janeiro está vivendo”, avalia Judith de Almeida, gerente comercial do Grupo Autêntica. Ela menciona ainda a estrutura do evento, que estimula a presença de varejistas que trabalham com preços de livros abaixo do valor de mercado. “A participação de expositores que têm foco nos ‘saldões’ tem forte impacto nesse resultado. Ela estimula no público a ideia de que os livros devem, obrigatoriamente, custar pouco. Isso é muito prejudicial ao setor, pois desestimula os investimentos em lançamentos ou edições de alto valor agregado”, analisa.
Os leitores que passaram pelo estande da editora buscaram mais por histórias universais e o livro mais vendido acabou sendo Anne de Green Gables, de L. M. Montgomery, que fala sobre ética, solidariedade, honestidade e a importância do trabalho e da amizade. K-Pop - Além da Sobrevivência, de Babi Dewet, Érica Imenes e Sol Paik; e Chapeuzinho Amarelo, escrito por Chico Buarque e ilustrado por Ziraldo, também ocuparam o pódio.
Já a editora Valentina registrou um aumento de 50% no faturamento e de 60% no número de exemplares vendidos em relação à Bienal do Livro Rio de 2017. O lançamento exclusivo na Bienal de Agir e pensar como um gato também foi diferencial para impulsionar as vendas. A editora não comercializou o título em nenhum outro ponto de venda sendo assim um lançamento exclusivo do evento.
A HarperCollins também teve um saldo positivo: a editora registrou um aumento de 250% em relação às vendas da Bienal de 2017. A editora levou 18 autores para o evento e os cinco livros mais vendidos da casa foram O Hobbit, de J.R.R. Tolkien; O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry; Sherlock Holmes box; Fique comigo, de Ayobami Adebayo; e De frente com o serial killer, de John Douglas e Mark Olshaker.
A Companhia das Letras vendeu 30% a mais do que na edição anterior, sendo que o campeão de vendas da editora foi o livro Quem tem medo de feminismo negro, de Djamila Ribeiro, seguido por A revolução dos bichos, de George Orwell e Conectadas, de Clara Alves. A lista ainda conta com os livros O céu sem estrelas (Isis Figueiredo), Rainha vermelha (Victoria Aveyard), Reino de Zalia (Luly Trigo), Sobre o autoritarismo brasileiro (Lilia Moritz Schwarcz), Uma mulher no escuro (Raphael Montes), 1984 (George Orwell), e Amoras (Emicida).
Manifesto assinado na Bienal do Livro do Rio
A Bienal Internacional do Livro Rio é a oportunidade que temos, a cada dois anos, para nos reunir, encontrar nossos públicos, nos inspirar e debater livremente sobre todo e qualquer tema, sem restrições e com empatia. Um evento de conteúdo qualificado e diverso, reconhecido nacional e internacionalmente como o maior festival cultural do Brasil.
Nos últimos dias, a Bienal se tornou um abrigo democrático, ao lado de 600 mil pessoas que prestigiaram o evento, contra as insistentes tentativas de censura. Se engana quem pensa que o alvo era a Bienal Internacional do Livro. O alvo somos todos nós cidadãos brasileiros, pois não precisamos ter quem determine o que podemos ler, pensar, escrever, falar ou como devemos nos relacionar. O brasileiro não precisa de tutor. Precisa de educação para que cada um possa fazer suas escolhas com consciência e liberdade.
Foi com alívio e muito orgulho que recebemos as duas decisões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) neste domingo (8/9) impedindo que a Bienal Internacional do Livro continuasse sofrendo assédio à literatura e aos seus leitores. Do contrário, se criaria uma jurisprudência que colocaria todos os eventos culturais, autores, editoras e livrarias do Brasil à mercê do entendimento do que é próprio ou impróprio a partir da ótica de cada um dos 5.470 prefeitos do país.
Encerramos essa edição histórica da Bienal Internacional do Livro Rio com o coração cheio de orgulho e determinação. A Bienal não acaba hoje. Ela seguirá com cada um de nós todos os dias. O festival foi memorável. Deu voz e ouvidos a todos os públicos. Reuniu e celebrou a cultura junto com autores, artistas, pensadores, lideranças de movimentos sociais, pastor evangélico, monge zen-budista, jornalistas, acadêmicos, ativistas, chef de cozinha e muitos outros.
Viva a Bienal do Livro Rio! Via a cultura! Viva a liberdade e a democracia!!