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Quem tem medo de Bruxa vai ter pavor de Saci?
PublishNews, Volnei Canônica, 1º/03/2019
Em sua coluna, Volnei Canônica sai em defesa dos seres fantásticos na literatura infantil. ‘Aprender a lidar com o simbólico é mais seguro do que lidar com as coisas ditas reais’, diz.

Saci Pererê pelas mãos de Ziraldo | Reprodução
Saci Pererê pelas mãos de Ziraldo | Reprodução
Eu estava mediando um bate-papo com a mais importante escritora brasileira de contos de fadas, a Marina Colasanti. Ela disse: "Quando criança, os contos de fadas me preparavam para um dos momentos mais difíceis, a hora de dormir”. Marina falava sobre o quão indefesa e despreparada a criança está neste momento no qual, por meio do sono, entra em contato com suas questões mais subjetivas.

Ler contos de fadas para crianças possibilita que elas reconheçam os seus medos e fortalezas, que aprenda a ter estratégias para vencer bruxas, ogros, dragões e bichos de sete cabeças durante os sonhos.

Os pais não precisam ficar preocupados se as crianças vão sonhar com os seres fantásticos ao lerem histórias com bruxas e outros personagens horripilantes. É importante entender que esses seres não são só a personificação do mal. Não podemos cair nesse maniqueísmo, mas também não podemos enfraquecer e nem julgar esses personagens amenizando a sua capacidade de crueldade. Quanto mais cruel for o ser fantástico, maior será a saga do herói, suas virtudes e seus aprendizados.

Portanto, quando uma criança se entrega ao sonho, ao subjetivo, ao imaginário, a sua psiquê, sem antes conhecer os seres imaginários, estará fazendo uma trajetória sem mapa, sem bússola, sem placas de direção. Como disse Marina Colasanti, essa criança está despreparada para mergulhar em questões que a inquietam, frustram, que a constituem. Provavelmente será uma criança com menor instrumental para sobreviver neste mundo.

Os seres fantásticos possibilitam que a criança tenha melhores condições de elaborar os seus conteúdos emocionais em vários níveis. Aprender a lidar com o simbólico é mais seguro do que lidar com as coisas ditas reais. A possibilidade de se construir uma sociedade mais tolerante e emocionalmente mais equilibrada está nessa capacidade de extrair do simbólico referências para construir seu comportamento, suas defesas e suas virtudes, fundamentais para todos os seres humanos. Se um adulto nega o simbólico para uma criança é porque, em algum momento, teve seu imaginário sequestrado por uma estrutura social ditatorial que usurpa dele a capacidade de lidar com a subjetividade.

Os contos de fadas provêm da oralidade, têm diferentes origens, não só a europeia, e ultrapassaram as diversas fronteiras geográficas, sofrendo mudanças ao longo dos anos. Mas todas as culturas têm os seus seres fantásticos. Como ignorar o Saci, o Curupira, a Mula Sem-Cabeça, o Boitatá, a Matinta Pereira, que povoam o imaginário brasileiro? Qual impacto disso para as crianças?

Segundo o nosso maior folclorista, Câmara Cascudo: “todos os países do Mundo, raças, grupos humanos, famílias, classes profissionais, possuem um patrimônio de tradições que se transmite oralmente e é defendido e conservado pelo costume. Esse patrimônio é milenar e contemporâneo. Cresce com os conhecimentos diários desde que se integrem nos hábitos grupais, domésticos ou nacionais”.

Portanto, privar as crianças desse contato com os seres fantásticos na ficção é excluí-las da história da própria sociedade em que elas e todos os seus antepassados se inserem. É negar um patrimônio cultural que pode transformá-las ela em “personagens sem entorno”, numa quase orfandade. Se desconectaria a ligação com a sociedade e, por consequência, quando na fase adulta, passariam a negar, ignorar ou desrespeitar toda a construção milenar formadoras de sua atual existência.

Nossos sacis e curupiras não são seres fantásticos para estar em altares de lares. São personagens ficcionais carregados de saberes transmitidos ao longo dos anos que não têm a capacidade de desvirtuar o caráter de nenhuma criança. Eles não apresentam e nem exigem escolhas fundamentalistas. Ao contrário, eles apresentam a liberdade e o contraditório. Dois elementos essenciais na construção do senso crítico de um indivíduo que no futuro terá autonomia para fazer as suas escolhas.

Ao saber disso, me preocupo toda vez que tenho notícia sobre a exclusão ou proibição de livros com seres fantásticos. Como adulto, educador e especialista em literatura infantil e juvenil sei que todo pai e mãe tem a liberdade de escolha para os seus filhos. Talvez, ao fazerem essas escolhas esses pais não tenham claras muitas dessas questões que trago nesse artigo.

A minha dica a todo adulto que está preocupado com o desenvolvimento da criança e sua atuação no mundo real é que possibilite o acesso àquilo que, ao longo dos anos já se comprovou essencial: o imaginário em toda a diversidade e a possibilidade proporcionada pela boa literatura em seus contos tradicionais, contos de fadas, contos maravilhosos, contos da tradição oral, no assim chamado folclore brasileiro e de outras culturas.

Todos nós estamos construindo essa sociedade e por isso, esse meu alerta sobre o absurdo de negar a presença dos seres fantásticos na ficção, a qualidade do folclore, de negar a diversidade, a pluralidade. Sem isso, reafirmaremos uma sociedade intolerante ao diferente. E somos todos diferentes, mesmo dividindo o mesmo lar debaixo de um teto.

Fico imaginando o quanto se perderá se as crianças brasileiras crescerem sem ter acesso a histórias como: Onde tem bruxa tem fada, de Bartolomeu Campos de Queirós; A fada que tinha ideias, de Fernanda Lopes de Almeida; A bruxinha que era boa, da Maria Clara Machado ou História meio ao contrário, de Ana Maria Machado. E se tiramos de perto das crianças as fadas e bruxas desastradas e bem humoradas da maravilhosa Sylvia Ortofh que nos deu dentre tantas obras primas a Uxa, ora Fada, ora Bruxa? Ou ainda, A bruxinha atrapalhada e todas as outras bruxinhas que Eva Furnari criou e encanta crianças de todas as idades. O que fazer com os seres fantásticos que emergem da escrita precisa de Marina Colasanti? Como ficar sem ler Mais de 100 histórias maravilhosas? E O Saci, de Monteiro Lobato e todos os outros livros que contam as aventuras de muitos personagens fantásticos no Sítio do Picapau Amarelo? Vou esconder a Cuca debaixo da cama? Quem tem coragem? Vou trancar o Curupira, de Roger Mello na gaveta como Wendy fez com a sombra do Peter Pan? E aquele Meu livro do folclore, do Ricardo Azevedo? Usar pra fazer uma fogueira de São João? Agora lembrei que tenho o livro Lendas brasileiras para jovens, do Câmara Cascudo. Esse eu vou ter de esquecer no banco do ônibus e junto com ele toda aquela linda Coleção de personagens do folclore brasileiro, que Januária Cristina Alves preparou com tanto cuidado. E suas Crendices e superstições, Marcelo Xavier? Vou ter de apagar da memória e me tornar um homem cético. Ziraldo, me desculpe, não posso mais fazer parte da Turma do Pererê. Vou ter de procurar outra turma.

Tenho certeza que você que está lendo esse artigo está lembrando de muitas histórias e seres fantásticos. Escreva nos comentários e vamos juntos povoar essa página com muitos seres fantásticos que não podem ser esquecidos, adormecidos, exilados e nem queimados.

Volnei Canônica é formado em Comunicação Social – Relações Públicas pela Universidade de Caxias do Sul, com especialização em Literatura Infantil e Juvenil também pela Universidade de Caxias do Sul, e especialização em Literatura, Arte do Pensamento Contemporâneo pela PUC-RJ. É Presidente do Instituto de Leitura Quindim, Diretor do Clube de Leitura Quindim e ex-diretor de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, do Ministério da Cultura. Coordenou no Instituto C&A de Desenvolvimento Social o programa Prazer em Ler. Foi assessor na Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Na Secretaria Municipal de Cultura de Caxias do Sul, assessorou a criação do Programa Permanente de Estímulo à Leitura. o Livro Meu. Também foi jurado de vários prêmios literários.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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