O ponto cego do mercado editorial
PublishNews, Daniel Lameira*, 26/11/2018
Em artigo, Daniel Lameira faz uma reflexão sobre a atual crise por que passa a indústria do livro e conclui: é a hora de ouvir os leitores

Os últimos meses foram repletos de notícias, colunas e debates sobre o momento caótico do mercado de livros no Brasil. Apenas uma intervenção divina salvaria hoje Saraiva e Cultura do coma que se encontram, levando com elas a curto prazo 1/3 das vendas de livros do país. As duas empresas, que entraram no processo de recuperação judicial, são obrigadas agora a pagar novas negociações, mas só terão ao seu lado algumas editoras tratando-as com uma cautela mórbida; sabendo que apenas 1% das empresas no Brasil sai do processo recuperada. O que fazer nesse cenário?

Os resultados imediatos já são os esperados, demissões, diminuição de lançamentos, tiragens menores (que resultam em preços de capa mais altos), aproximação e dependência maior de Amazon, Curitiba, Leitura e outras redes e multinacionais investindo na crise para colher mais tarde. Tudo isso somado a uma busca sôfrega por ideias e novidades que muitas vezes, até então, eram abafadas internamente nessas empresas.

Se por um lado é bom ver o mercado reconhecendo a necessidade de sair da catatonia confortável, por outro é angustiante ver a falta de uma palavra-chave ser abordada com o peso e o respeito devido nessa cadeia: o leitor.

O fim da dependência da Saraiva e Cultura possibilitou que alguns importantes temas voltassem à tona: o fim do modelo de consignação, a venda direta ao consumidor, a lei do preço fixo e uma necessidade eventual de união das editoras. Para quem está no mercado há alguns anos é possível inclusive uma familiaridade nas discussões, lembrando, às devidas proporções, o momento da implementação da venda de livros digitais no Brasil.

Os movimentos relembram a frase no Gattopardo de Lampedusa, quando o príncipe se junta aos republicanos: "Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi" (Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude).

Mas as editoras estão abertas para que tudo mude? Algo que mudou de dez anos para hoje, e que sequer aparece à margem das discussões de SNEL, CBL, ANL e das grandes marcas: as novas possibilidades de contato no mundo conectado, a forma nova de consumo de marketing e de leitura e, o mais importante, o que o leitor quer.

Insiste-se ainda, e não tem como negar a importância, das bibliotecas e livrarias, mas ignora-se que hoje o maior meio de convencimento, tempo, ensino e criador de novos interesses é a internet. Durante muito tempo colocou-se, estupidamente, o livro como o antagonista do mundo conectado, mas devemos aprender a conviver e inserir o livro nesse universo.

A última Bienal do Livro deu o tom do contato direto: sem Saraiva presente, as editoras puderam ousar mais em descontos e tiveram vendas expressivas. Os estandes com mais experiências, aprendizado com a CCXP, chamavam atenção e as ações eram propagadas nas redes. Os leitores compareceram, fizeram filas, interagiram, reconheceram os autores nacionais jovens (que raramente ainda recebem a atenção devida nas editoras) como as celebridades do evento e colocaram seus livros no topo dos mais vendidos de Companhia das Letras, Record, Globo e outras casas.

Como transferir essa relação e experiência para todos os pontos de contato, todos os dias do ano?

Os leitores continuam ávidos pelos livros e, segundo todas as pesquisas, crescem em quantidade a cada ano. Paralelo a esse crescimento, o que é óbvio, mas vale ser dito, a internet como passatempo preferido entre os leitores cresceu, segundo Retratos da Leitura, de 18% em 2007 para 47% em 2015. Hoje deve passar de 80% para alguns recortes. Boa parte das marcas ligadas a livros, porém, continuam vivendo em um mundo em que o contato com leitor se resume a panfletos de vendas versão online ou telefonema de reclamação versão comentários de Facebook, com direito a manual de resposta e tudo.

Se durante muitos anos a quantidade de livros, seja em variedade de títulos lançada, como a Record com todos seu selos que chegaram a 40 títulos por mês, ou em tiragens agressivas como Intrínseca e Sextante imprimindo 100, 200 mil cópias de um livro, possibilitavam uma ocupação de espaços físicos que impactavam diretamente em vendas. Isso muda para parte do mercado, onde o diferencial passa a ser a profundidade dessa relação com os leitores, já que na compra online todos os livros, exceto banners, e-mails mkt, estão igualmente acessíveis.

O Kotler, em seu livro mais recente, estabelece o caminho do consumidor no mundo conectado passando por Assimilação, Atração, Arguição, Ação e Apologia. Ao considerar que os caminhos comuns das editoras estão perdendo relevância: imprensa tradicional, propagandas convencional, compra do espaço em loja e mesmo alcance orgânico de redes, as editoras chegam em menos pessoas. Fazer seu público saber que seu livro existe, depois mostrar pra ele porque ele é bom, depois oferecer um bom call-to-action para compra e ainda possibilitar espaços para ele propagar esse produto depois é o grande desafio do marketing hoje.

Aliás, não só do marketing. Na verdade, essa divisão fordista que hoje toma as editoras em que uma pessoa iluminada decide o que deve-se contratar, depois faz-se o livro para aí cair para o setor marketing fazer com que as pessoas saibam daquilo e o coitado do comercial possibilitar que aquilo venda está a cada dia mais ultrapassada. O livro deve ser um produto co-criado, cada profissional deve entender profundamente as possibilidades e limitações da outra área para conseguir extrair o máximo daquele produto da concepção à venda. De preferência com todo o caminho pautado por uma ideia em comum de como abordar aquele livro. Só assim é possível que o todo seja mais que a soma das partes.

E só assim é possível antecipar a criação do livro como parte de uma experiência de consumo maior.

Um interlúdio para cases

Pipoca e Nanquim, editora de quadrinhos com pouco mais de dez títulos, criada por ex-editores da Mythos e derivada de um canal de YouTube sobre o tema, disputa hoje com números equivalentes aos maiores grupos editoriais do mundo a venda de quadrinhos no Brasil. Além de receber de diversas marcas para criar publieditoriais divulgando quadrinhos e livros de outras editoras.

Jovens de Porto Alegre, de fora do mercado do livro, criaram a empresa mais buscada por editoras, a Tag. Cobram quase R$ 70, por livros que tem versões bem mais baratas, mas que o público aceita por comprar a experiência, exclusividade de formato e os serviços ao leitores que nenhuma editora chega hoje perto. O clube curadoria tem quase 30 mil assinantes e a empresa compra os livros das grandes editoras a um preço baixíssimo e orienta, inclusive, os caminhos para a produção, capa e acabamentos. A editora atua, na prática, como uma prestadora de serviço, aliada a gráfica.

O projeto Leia Mulheres tem reunido, em todo Brasil, de forma autônoma e sem marcas envolvidas milhares de pessoas que se encontram para discutir livros de autoria feminina

DarkSide e Aleph, junto com Intrínseca, tem os maiores engajamentos de redes sociais de editora do mundo. As duas editoras de pequeno porte relançaram clássicos ignorados por grandes casas e vendem mais do que muitos livros propagandeados como best-sellers do momento.

A Aleph, aliás, acaba de bater o recorde de financiamento coletivo para uma edição comemorativa do livro 2001, engajando leitores a investir antecipadamente mais de R$ 450 mil.

A DarkSide tem colocado autores que estão em domínio público, como Poe e Lovecraft, concorrendo com novidades em números de vendas e deixando para trás outras edições, lançadas por casas até maiores em tamanho.

O maior podcast do Brasil, Jovem Nerd, criou suas próprias histórias de RPG em áudio. Tiveram mais de 2 milhões de downloads por episódio e criaram livros de ficção contando a história dos personagens, com tiragens equivalentes às do mercado, e são vendidos apenas na Nerdstore, a sua própria loja. Ou seja, são os próprios autores, varejista, marketing e retém 100% da margem para si.

Possíveis caminhos

Existem três caminhos que quero destacar e que, ao meu ver, podem ajudar nessa saída do terreno pantanoso que nos encontramos. Caminhos que priorizam ou ajudam nesse contato com o leitor de forma humilde e que, com mais clareza, possam levar a eles os livros que tanto amamos.

1. Criação de conteúdo

Embora os youtubers tenham invadido nosso mercado e recebido olhadas tortas e comentários preconceituosos dos puristas editoriais, uma pergunta deveria ter saído desse encontro: como os criadores de conteúdo conseguem esse engajamento e o que podemos aprender disso?

Se o contato exclusivo com stakeholders não é o diferencial mais das editoras, o know-how de como se edita um livro também não, no marketing cada vez fica mais claro que dependemos também do engajamento alheio para ter vendas expressivas, seja fazendo um livro de Larissa Manuella, atores, atrizes, seja transferindo seu engajamento para um livro, Giovanna Ewbank com A sutil arte de ligar o foda-se, Jout Jout com A Parte que falta e centenas de outros casos; ou a busca por livros ligados a adaptações para audiovisual.

Mas passar de agente passivo para agente ativo nesse cenário é um ponto de atenção para as editoras. Mesmo depois da febre dos youtubers, qual editora criou, ou apadrinhou um canal, nos moldes em que se consome a mídia? Ao meu ver praticamente nenhuma.

Os poucos casos continuam autocentrados, com uma máscara de conteúdo em cima de uma propaganda desvelada. Quem em sã consciência chegaria em casa depois do trabalho, abriria uma cerveja e falaria: putz, sabe o que eu queria ver agora? Os lançamentos de setembro da editora X. Para criar conteúdo online é preciso consumir esse conteúdo. É preciso consumir sem julgamentos pretensiosos e criar conteúdo real. Falar do que se acredita, falar de outras editoras, falar sobre outros assuntos.

Prestar um serviço real ao leitor. Me dê uma aula sobre literatura russa, me ofereça um mailing sobre as notícias de livros em geral, me encha de gifs sobre relacionamento. Seth Godin fala de marketing de permissão, temos que fazer um acordo que, em troca do conteúdo incrível que vou te oferecer, você me permita te vender um livro. Me dê um conto de graça desse autor, para depois me vender o romance. Me dê uma experiência de convívio para eu ouvir você me contar sobre as novidades da empresa.

Ao contratarmos um novo projeto editorial, talvez já devamos pensar em como editá-lo e adaptá-lo de forma transmídia. Ajudar o autor a criar seu conteúdo online, seu canal, seu podcast.

Acredito que hoje a Companhia das Letras figure entre as grandes editoras, embora de forma tímida e ainda relativamente autocentrada, como a editora que está dando os primeiros passos nesse caminho, com o podcast comandado pelo Fábio Uehara e a Flipop, liderada pela Diana Passy, como dois bons exemplos.

2. Influenciadores

A área de contato com influenciadores, que no fim são aqueles que hoje já engajam e tem um relacionamento com os consumidores, é ainda pouquíssimo explorada pelo nosso mercado. Quando citamos os creators, como são batizados pelo próprio YouTube, não é raro ouvir de profissionais de marketing das editoras um contra-argumento com políticas para "blogs parceiros"; caso em que mandam livros em trocas de resenhas em blogs, mas isso não arranha a superfície do tema.

Os influenciadores (que termo horrível!) que podem ir de celebridades muito seguidas no Instagram, Felipe Neto, passando por alguns blogueiros do LinkedIn até você, que provavelmente pode influenciar seus amigos, são ou ignorados dentro das editoras ou agregados como um a mais que uma área deve cuidar, normalmente marketing ou comunicação. Criei, na Intrínseca, uma área focada nesse relacionamento exatamente por ver repetidamente esse cenário.

Comunicação tratando criadores de conteúdo com lógica de imprensa, fazendo follow e mandando release. Marketing trabalhando com eles pontualmente, fechando uma ação hoje para um livro e não voltando a falar durante meses ou anos. Os influenciadores já são considerados a segunda maior motivação por trás da decisão de compras e para trabalhar com essa área é preciso ser adaptável. Um grande youtuber pode cobrar R$ 150 mil para criar um vídeo, R$ 20 mil para fazer uma série de stories que sumirão em 24 horas ou postar uma foto de graça porque realmente gostou do livro. E isso pode resultar em menos vendas do que uma boa ação com uma comunidade de micro influenciadores.

Instigá-los, conhecê-los profundamente um a um, consumir e respeitar já é um bom caminho andado para passar a trabalhar com marketing de influência. Tenho um outro texto falando sobre porquê acredito que valha a pena pagar por criação de conteúdo online, então aproveito aqui pra reforçar algo essencial, como é importante manter esse relacionamento com eles constante. E, a partir do momento que consumimos, sabemos qual livro mandar, qual não mandar de forma alguma, qual ação será investimento certeiro e qual não será, quais as motivações pessoais por trás daquele podcaster, youtuber, agente.

É urgente que nos adaptemos e entendamos esse universo além de ficarmos filtrando quem tem mais seguidores para contratarmos seus livros. É um universo que guarda muito em comum com o mercado livreiro, é um conteúdo sendo criado, editado, marketeado, vendido, propagado. E que já faz isso sem uma instituição por trás.

Se ainda considerarmos o movimento para impulsionar o trabalho de afiliados nas vendas online, capitaneado pela Amazon mas possivelmente seguido por outros e-commerces, inclusive próprios de editoras, esse relacionamento é ainda mais urgente. Mas vale avisar, chegamos tarde, é um mercado caro, profissionalizado e que, para conseguirmos entrar, ou vamos gastar muito dinheiro ou vamos suar, como deveríamos, e ajudar alguns canais a se solidificarem.

3. Preocupação com a marca

Eu amo as séries da HBO, filmes de heróis só da Marvel, gosto das animações da Pixar. É inocência achar que a marca por trás de uma seleção e criação de conteúdo não possa influenciar no consumo, mas isso é ainda irrelevante no mercado editorial. Por quê?

Quem trabalha no mercado, ou uma pequena porcentagem que gosta de acompanhar ,sabe que a 34 é sinônimo de qualidade de tradução do russo, que a Intrínseca tem um nível de acerto de tendências alto, ou que Companhia das Letras carrega uma história de preocupação com a chamada alta literatura. Mas fora do mercado o maior parte dos leitores não percebe ou não é impactado pela marca ou selo que lança o livro.

Acredito que por falha nossa. Como disse no começo do texto a multiplicidade de lançamentos e o foco produto a produto resultou em bom faturamento durante anos, então as editoras sempre se focaram em um marketing 2.0, focado no produto e no preço e menos na experiência.

Mesmo os selos, que idealmente hoje seriam uma saída para impactar um público segmentado e mais engajado com a marca, em muitas editoras se resumem em um carimbo na lombada do livro e não diferenciam em nada os seus livros de outros. Seja em escolha de profissionais, forma de divulgação, cronograma, distribuição.

Embora acredite que a DarkSide, Aleph e Boitempo sejam bons exemplos desse trabalho em nicho literário, a Cosac pode ser usada aqui como um grande exemplo de que essa unidade não precisa ser dada por gênero, mas também por forma, por filosofia de publicação.

Esse trabalho de branding se resume a entender qual é essência da editora ou do selo, e tomar decisões de forma a reforçar essa identidade. De logo e slogan a livros a serem publicados, forma de se responder no Facebook, lógica de distribuição, conteúdos produzidos. Com a escassez de atenção do consumidor, quanto mais claro conseguirmos passar para o leitor quem nós somos, mais fácil ele se lembrará e usará essa experiência anterior para influenciar na escolha do produto.

Agora pense em diversas editoras do Brasil e tente resumir o que elas são? A grande maioria se quer conseguimos fazer isso, não há lógica alguma por trás de algumas marcas; às vezes se tornaram uma amálgama do que sobrou de grandes sucessos com ideias que tinham profissionais que passaram por lá.

Saber o que faz da sua marca diferente e usar isso inteligentemente, sem menosprezar a inteligência do consumidor, é um passo essencial para criar a conexão que precisamos. No tocante a esse assunto, não à toa os vídeos do Bolsonaro pareciam um bunker da resistência, tá ok? Tudo está embebido de mensagem, inclusive o ar asséptico e impessoal de muitas empresas.

Mas só isso?

Não, essas são três ferramentas que acredito que possam ajudar abrir uma trilha no pântano. A partir daí, para cimentarmos esse novo modo de venda de livro, após encontrar e encantar o leitor temos que passar a investir em um CRM cuidadoso, estratégias de abordagem novas, WhatsApp, venda presencial, IA e ultrapersonalização de call-to-action, provavelmente com B2C e preços menores.

Embora sejam ferramentas que todas editoras possam usar, acredito que haverá uma cisão. Nem todas editoras se manterão no modelo padrão conhecido hoje, algumas focarão em achar pontos alternativos de vendas, outras verão a necessidade de subsidiar mais agressivamente novas livrarias e outros podem partir para eventos, verticalização de produtos incluindo cursos, outros produtos ou seguirão outras estratégias. Um certo fim para a ditadura da lista de mais vendidos, inclusive.

Mas não adianta insistir e postergar a relação com o leitor. A maturidade de todas as mídias culturais, aulas à distância, jogos, música, cinema tem passado pelo processo de encontrar um serviço que valha o valor que o leitor quer pagar. E aqui ou explicamos, dialogamos, saímos de trás da baia para mostrar que o que entregamos realmente vale a pena; ou nos adaptamos para romper com o modelo atual e encontrarmos novos que se adequem a demanda

A editora precisa se fazer valer. E se isso não vai ser mais pelo contato exclusivo com stakeholders, nem pelo investimento financeiro com a chegada eminente de POD, há de ser por algo: curadoria? bons livros nacionais? conteúdo transmídia? formas inovadoras? preço? descomoditização do produto? Não sei, mas quanto antes identificarmos a nossa, melhor.

O mercado brasileiro é referência mundial para maturidade de conteúdo online. Se as editoras ficarem esperando, vão ser ultrapassadas por empresas de fora, pela autopublicação, pelos autores que entenderam antes essas ferramentas e nos veremos com um saudoso passado em que as coisas eram mais simples.

Passou-se o tempo em que a indústria ditava o que e como se consome o produto. Somos o último bastião de uma luta que não dá pra ganhar e que não vale nem se combater, porque estamos errados. O leitor é o que importa, a ele devemos tudo.

Nada disso que escrevi é novo e diversos profissionais tem tentado ao longo dos anos implementar essas lógicas nas editoras. É hora de ouví-los.

A humildade, somada a ousadia, é o caminho.


* Daniel Lameira é historiador, editor e consultor de tendências no mercado editorial. Foi vencedor do Prêmio Jovens Talentos de 2015.

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