Publicidade
Publicidade
Candidaturas e o olhar de bons ensaístas: o London Review of Books
PublishNews, Felipe Lindoso, 13/10/2016
Felipe Lindoso aponta que nas discussões sobre política, a grosseria não precisa substituir a ironia; a violência verbal não precisa assumir o lugar da argumentação

Desde quando o chanceler Bismark observou que é melhor o povo não saber como são feitas as salchichas e as leis, o interesse por esses mecanismos “ocultos” da construção do poder desperta crescente curiosidade. É certo que Marx e os filósofos já vinham explicando os grandes movimentos de classe na conformação do Estado e das transformações sociais. Mas o pão-com-manteiga recebia uma abordagem menos sistemática. Apesar do próprio Marx, em A Luta de Classes na França, no 18 Brumário de Luís Bonaparte, e nos ensaios sobre a Comuna de Paris já tratar desses mecanismos, o cotidiano “normal” da política passa a ser progressivamente uma área da ciência política (inclusive da antropologia). Ainda assim, conversa para iniciados.

Além dos próprios políticos, que podiam não teorizar, mas sabiam muito bem manobrar a prática desse jogo que existe por trás das estruturas de poder.

A London Review of Books, que subscrevo, de vez em quando manda uma seleção de artigos ou resenhas anteriormente publicados que têm a ver com assuntos candentes do momento, na Inglaterra ou no panorama internacional (O Brasil já saiu várias vezes, mas em números normais).

Semana passada, o e-mail veio com artigos sobre os antecessores do Barack Obama, seja analisando livros sobre, ou ensaios de alguns dos articulistas da LRB. São peças fantásticas. E todos os textos colocam foco em vários aspectos desse “mundo real” – e oculto – da política institucional.

O do Christopher Hitchins sobre Bill Clinton, e que pega de passagem vários aspectos da atividade política da Hillary, é uma dessas. Disseca a carreira do ex-presidente, suas ligações com os conservadores desde que, como Democrata, fazia campanha para o McGovern, lá em 1992, no Texas. O cara se aliou, de fato, aos tipos conservadores do Partido Republicano para pavimentar suas ações futuras, dez anos antes de se lançar como candidato. E Hitchins vai listando as posições que ele tomou à direita do Bush pai sobre vários temas da campanha.

Do ponto de vista pessoal, o levantamento do ensaísta inglês também é devastador. Lá pelas tantas ele diz que Bill “É um cachorro difícil de manter na varanda” (é o título em inglês do artigo), significando que, tal como o dito lulu, se passa uma cadela no cio, ele não se contém e sai atrás. Hitchens chama atenção sobre como as feministas, paradoxalmente, se uniram para defendê-lo em várias situações. E, é claro, como Hillary aprovou e supervisionou o levantamento dos podres das mulheres às quais Bill havia, digamos, prestado homenagem, para destruir a credibilidade de cada uma delas. Tema, aliás, que o Trump vem retomando...

Mas outros dois temas aparecem. O caso imobiliário Whitewater, que chegou a provocar suicídio de um dos advogados sócios do escritório – do qual Hillary fazia parte – e várias demissões na equipe presidencial. E um obscuro aeroporto em Arkansas usado para levar armas para os Contra nicaraguenses – e trazer de volta “ouro branco”. Tudo arquitetado pelo coronel Oliver North com as bênçãos do Reagan.

E mais as transações em que a política dos EUA foi usada para defender interesses das empresas ligadas ao financiamento das campanhas de Clinton, incluindo os grandes criadores de porco, e o aval às políticas do Yeltsin.

Enfim, essas e outras manobras nas entranhas da política institucional dos EUA, de um modo sintetizado de maneira bem aberta por um dos gurus intelectuais de Bill, Carroll Quigley, da Georgetown University:

“O argumento de que os dois partidos devem representar políticas e ideais opostos... é uma ideia boba. Na verdade, os dois partidos devem ser quase idênticos, de modo que o povo Americano possa colocar para fora os canalhas em qualquer eleição sem que isso leve a nenhuma mudança profunda ou extensa. As políticas que são vitais e necessárias para a América não são mais objeto de discórdias significativas, mas se disputam apenas nos detalhes, procedimentos, prioridades e métodos”.

O interessante é que Hitchens expõe tudo isso sem adjetivos, sem xingamentos. É um trabalho praticamente de patologia forense, desnudando as entranhas do funcionamento da política dos EUA.

Ou, dito simplesmente, uma análise política da política.

Os outros artigos seguem pelo mesmo rumo.

Outro artigo cai sobre o Bush. Jenny Diski, escreve sobre o livro Bushwomen: Tales of a Cynical Species, de Laura Flanders. De Barbara Bush (mulher do papai, o Bush I), Laura (a do Bush II), Condoleeza Rice – Secretária de Estado, a outras tantas que ocuparam cargos no gabinete do Bush II (o livro começa com um relato da convenção republicana que sacramentou a primeira candidatura do George W.). Pois bem, Jenny Disk disseca o discurso das damas republicanas, mostrando como manipulavam os temas feministas para ganhar os votos das mulheres para sustentar as políticas republicanas. A manipulação dos estereótipos mais vulgares da vida feminina (bonita às vezes, sempre recatadas e do lar) recebe essa versão anti-intelectual, chocha, bem mastigada, para ganhá-las. Essas políticas conseguem às vezes aplicar de modo mais sistemático e cruel as práticas mais antifeministas e antipopulares. “A culpa é do Foucault”, diz Diski, por conta de fantástica inversão que Foucalt descreve em Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão ... a horrenda história do louco que fez tudo isso e achava normal. Essa “normalidade” do patologicamente anormal e doentio se exemplifica no que disse Lyna Cheney, esposa do Vice-Presidente e mentor do Bush II, Dick Cheney, que afirmou “acreditar que a cultura americana “se afastou da razão e da realidade”, ficou contra a própria “Verdade”. E culminou com a declaração de Laura Bush de que “não havia nada de político na literatura americana”. Esse tipo de alienação está no cerne da “inteligência” oficial dos Republicanos. Infelizmente, não é privilégio deles....

Tem mais. Stpehen Greenblatt, autor do fantástico A Virada, escreveu em 1988 uma resenha do livro Ronald Reagan, the Movie, and Other Episodes in Political Demonology de Michael Rogin, no qual o autor faz digressões freudianas sobre as projeções do Reagan em relação ao pai (um alcoólatra vendedor de sapatos), interligadas com a história e os temas dos filmes estrelados por aquele herói dos filmes B hollywoodianos. A fantástica projeção que o dito “Grande Comunicador” fazia dos personagens que representou – a maioria no contexto da Guerra Fria e da caça aos comunistas do macartismo –, e como isto se expressa nos exemplos e nas banalidades que chegavam a levar às lágrimas as plateias daquilo que Nixon já chamava de “maioria silenciosa” dos EUA.

Um ponto interessante é o comentário que ele faz sobre os pólipos intestinais do presidente, que recebeu um elaborado tratamento midiático, com a publicação dos resultados detalhados da proctocospia presidencial, e enorme cobertura televisiva da doença, cirurgia e recuperação do velhote. Tática reproduzida pelo indicado à sua sucessão, Bush pai, que também providenciou um exame do seu fiofó para “assegurar ao público que o país seria governado nos quatro anos seguintes por um babaca saudável”.

E mais artigos sobre Nixon, Nancy Reagan, Lyndon Johnson, Franklin Roosevelt, sobre suas mulheres – primas, secretárias e etc... e a devoção que lhe dedicavam no meio de um melée sexo-conjugal fantástico. E também sobre Jackie Kennedy, escrito por Colm Tóibín.

A minha intervenção sobre esse conjunto de artigos e resenhas da London Review of Books, para além do esforço de mostrar essa anátomo-patologia da política cotidiana, é chamar atenção para dois pontos:

O primeiro é que tudo isso pode ser feito com elegância e boa fundamentação. A grosseria não precisa substituir a ironia; a violência verbal não precisa assumir o lugar do vigor da argumentação e da fundamentação.

Isso é bem o contrário do que temos visto ultimamente, tanto na política brasileira como na internacional. A baixaria da atual campanha presidencial dos EUA surpreende quem assistiu os últimos embates brasileiros? O que vemos, lá e cá – ou cá e lá – de manipuladores de mídia, mídia manipuladora, jogo do dinheiro, violência verbal e manipulação de fatos, a criação de versões. E, confesso, fico espantado com o entusiasmo com que foi recebida a fala explosiva de Robert de Niro, que passa um tempão esculhambando o Trump.

De minha parte, também gostaria de dar um soco nas fuças de várias pessoas – tanto por razões pessoais como políticas. No entanto, compreendo que essa “solução” não resolve problema nenhum. Da mesma maneira como não acredito que a corrupção seja o problema central da política brasileira (até porque corrupção é fenômeno inerente a todas as estruturas de poder), e sim a desigualdade, não acredito que o xingamento possa fazer avançar nenhuma discussão.

O segundo ponto é que, ao contrário do que podemos ler em publicações como a London Review of Books, o New York Times Book Review e várias outras publicações – e mesmo na grande imprensa – da América do Norte e da Europa, é assombrosa a pobreza analítica desse cotidiano que constatamos aqui no Brasil. O que imitamos, infelizmente, é a cultura de manipuladores “spin doctors”, os manipuladores de informação.

Isso precisa mudar.

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

Publicidade

A Alta Novel é um selo novo que transita entre vários segmentos e busca unir diferentes gêneros com publicações que inspirem leitores de diferentes idades, mostrando um compromisso com qualidade e diversidade. Conheça nossos livros clicando aqui!

Leia também
Em sua coluna, Felipe Lindoso dá seus pitacos sobre a Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro divulgada na última segunda-feira
Felipe Lindoso resgata a história do ISBN para analisar a mudança da operação do ISBN, que deve acontecer em março próximo
Em sua coluna, Felipe Lindoso chama atenção para a importância do acervo bibliográfico e documental das bibliotecas do Museu Nacional, que foram destruídas no incêndio do ano passado
Felipe Lindoso sai em defesa do casal de sebistas processado por Edir Macedo. 'Esse processo representa um atentado à liberdade de expressão tão grave quanto o veto a Miriam Leitão e Sérgio Abranches', defende.
Em sua coluna, Felipe Lindoso conta os bastidores que possibilitaram a inauguração de uma biblioteca infantil dedicada à língua portuguesa no Japão
Publicidade

Mais de 13 mil pessoas recebem todos os dias a newsletter do PublishNews em suas caixas postais. Desta forma, elas estão sempre atualizadas com as últimas notícias do mercado editorial. Disparamos o informativo sempre antes do meio-dia e, graças ao nosso trabalho de edição e curadoria, você não precisa mais do que 10 minutos para ficar por dentro das novidades. E o melhor: É gratuito! Não perca tempo, clique aqui e assine agora mesmo a newsletter do PublishNews.

Outras colunas
Todas as sextas-feiras você confere uma tira dos passarinhos Hector e Afonso
Seção publieditorial do PublishNews traz obras lançadas pela Ases da Literatura e seus selos
Em 'A cartinha de Deus', a autora leva os leitores em uma jornada íntima e inspiradora, mostrando como aprendeu a lidar com os desafios impostos pela distonia
Em 'Alena Existe', publicada pela Ases da Literatura, o autor Roger Dörl desvenda os segredos do universo numa trama repleta de ficção científica, aventura e mistério
Conheça a jornada de Nick, o gatinho amoroso que ensina sobre presença e ausência no livro da autora Maurilene Bacelar, lançamento da Editora Asinha
'A montanha mágica', de Thomas Mann. Nenhum leitor é completo sem ter lido esse livro.
Marina Colasanti
Escritora brasileira
Publicidade

Você está buscando um emprego no mercado editorial? O PublishNews oferece um banco de vagas abertas em diversas empresas da cadeia do livro. E se você quiser anunciar uma vaga em sua empresa, entre em contato.

Procurar

Precisando de um capista, de um diagramador ou de uma gráfica? Ou de um conversor de e-books? Seja o que for, você poderá encontrar no nosso Guia de Fornecedores. E para anunciar sua empresa, entre em contato.

Procurar

O PublishNews nasceu como uma newsletter. E esta continua sendo nossa principal ferramenta de comunicação. Quer receber diariamente todas as notícias do mundo do livro resumidas em um parágrafo?

Assinar