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Mo Yan, China e indústria editorial chinesa
PublishNews, Felipe Lindoso, 15/07/2015
Mo Yan, o segundo Prêmio Nobel chinês, foi muito criticado. Diziam que era "escritor oficial". Quando foi ler seus romances, Felipe Lindoso viu que a coisa era muito diferente.

No ano 2000, quando era diretor de Relações Institucionais da CBL, a instituição recebeu um convite para visitar a Feira de Livros de Beijing, naquele ano. Os chineses pagavam tudo – hotel, transportes internos, refeições, passeios – mas era preciso comprar a passagem até Xangai. Ninguém da diretoria topou ir. Eu reuni milhagem, fiz as contas e fui.

Foram quase 15 dias muito interessantes. Muito turismo, comidas exóticas (sem chegar aos exageros de cobras, cachorros e lagartos), reuniões com editores, tanto em Xangai como em Beijing, e a visita à Feira. O esforço que os chineses faziam no momento era mostrar que estavam combatendo a pirataria a sério. Era uma queixa, principalmente dos editores dos EUA e do Reino Unido, e muito focada na área técnico científica. Mereci até foto na primeira página do China Daily... identificado como visitante cubano! Pelo que fui devidamente gozado pelo pessoal da Embaixada do Brasil, no dia seguinte.

Havíamos publicado, na Marco Zero, as memórias de Pu Yi, o último imperador chinês, traduzidas por Li Junbao, que estava fazendo um curso na USP e que, durante a Revolução Cultural, passou meses trancado em um hotel como parte da equipe que traduzia as Obras Escolhidas do Presidente Mao para o português. E eu havia pensado em traduzir (do espanhol) Meia-noite, romance da década de 1930, de Mao Dun, escritor que, juntamente com Lu Xun (contista), eram os representantes da literatura engajada, comunista. Não deu.

Eu não conhecia nada de literatura chinesa contemporânea. Aliás, coisa raríssima era algo além de alguns clássicos, como A viagem ao Oeste, ser traduzido.

Passaram-se os anos e começaram a aparecer obras chinesas por aqui. Principalmente filmes. O sorgo vermelho, de Zhang Yimou, foi um filme impactante, tanto pela beleza como pela descrição das condições de vida na China pré-revolucionária. O filme era baseado em um romance do Mo Yan.

Ainda naquele ano 2000 (depois que voltei da China), foi anunciado como vencedor do Nobel o escritor Gao Xingjian, exilado, dissidente e morando em Paris. Em 2002, creio, li em espanhol A montanha da alma. Romance metafísico, chatíssimo, que não me comoveu absolutamente nada. Em 2010, Liu Xiaobo ganhou o Nobel da Paz. Os dois prêmios foram violentamente criticados pelo governo chinês, que acusou o Nobel de provocação.

Chega 2012 e outro chinês ganha o Nobel. Dessa vez, Mo Yan. E tome crítica ao Nobel e a ele, apresentado como “escritor oficial”, conivente com o regime. Enfim, como alguém não merecedor de ganhar prêmio nenhum, ainda que no ano anterior já houvesse recebido o Newman, reputadíssima premiação dos EUA e bom indicador dos possíveis candidatos ao galardão sueco. Além do mais, Mo Yan era dirigente da Associação dos Escritores da China e havia começado sua carreira produzindo peças de propaganda para o exército. Tudo parecia indicar que, de fato, a premiação era resultado da pressão de Beijing sobre os suecos para “reparar” as provocações anteriores.

No meio tempo, começam a pipocar notícias sobre a exuberância do mercado editorial chinês. Como quase tudo por lá, as coisas são superlativas. Um dos fenômenos mais curiosos é o dos autores online, que são “premiados” por seus leitores e viram multimilionários. Um “deus inferior” alcança esse status quando é lido por mais de 100 mil pessoas. Depois que os fãs (que, aliás, pagam também ao site para votar) chegam na casa do milhão, os autores passam a ser dashen (super-deus) e já ganham uma nota preta. Mas não são os top, chamados de zhigaoshen (supremo-deus). Os 20 ou 30 escritores nessa categoria disputam com esses pobres Paulo Coelho e J.K. Rowling em número de leitores e dinheiro recebido!

Na BookExpo America do ano passado, a China foi a convidada de honra (já havia sido em Frankfurt), e a revista publicada através da Publishing Perspectives mostra um panorama geral. Nessa revista, um dos artigos relata os esforços do governo Chinês para a promoção internacional da literatura chinesa.

“A chave para ‘tornar-se global’ – diz a publicação – “é lembrar que o conteúdo está no coração da estratégia. Já que uma publicação pode servir apenas como ponte de comunicação e laço intelectual quando as pessoas de fato a leem, o conteúdo é necessariamente o foco central do processo de ‘tornar-se global’. Como resultado, implementar ativamente o ‘Projeto de Edição Internacional da China Clássica’ é essencial. Esse projeto, que funciona já há cinco anos, já financiou mais de 2.800 livros no exterior[...] Mo Yan, Wang Meng, Tie Ning, Su Tong, Wang Anyi, Liu Zhenyun, Alai e Cao Wenxuan são apenas alguns de muitos dos escritores bem conhecidos que receberam financiamentos do projeto ano anterior -2013. Mo Yan, por exemplo, recebeu US$ 2,7 milhões como apoio oficial para a venda internacional dos direitos de seus livros”.

Puxa, mais uma razão para pensar que Mo Yan é tão somente um propagandista do regime. Afinal, escoriar o passado feudal da China é fácil e dentro da linha correta, como é o caso de Sorgo vermelho.

Até ler outros livros.

A Amazon lista 11 títulos do autor traduzidos para o inglês. Li dois. Primeiro The garlic ballads, e terminei esta semana a leitura de The republic of wine.

The garlic ballads, em síntese, conta a história da decisão das autoridades de uma região do Noroeste da China (que críticos já disseram que, para Mo Yan, é o condado de Yoknapatawpha, de Faulkner) de estimular todos agricultores a plantar alho. Quando a colheita chega, o preço desaba, não há como estocar alho, há uma revolta popular que destrói a sede da prefeitura e do partido local. No meio disso, tráfico de influência, permanência das estruturas familiares arcaicas e muita violência. Tudo isso narrado em um tom sarcástico, altamente corrosivo, pontilhado pelo cego local que canta as baladas (e que termina assassinado, é claro).

The republic of wine é muito mais delirante. Uma região da China, conhecida como “Liquorland” pela qualidade de suas bebidas, e dos pratos exóticos da sua cozinha, recebe a visita de um investigador especial da procuradoria regional para verificar uma acusação pavorosa: a de que estariam preparando pratos sofisticadíssimos com crianças assassinadas, compradas de seus pais miseráveis, que as criavam com essa finalidade. O romance usa técnicas variadas, e o próprio Mo Yan (escritor famoso, mas ainda ligado ao exército, no romance) vira personagem, ao ler e opinar sobre os contos enviados por um admirador “Doutor em ciências de bebidas” do Brewering College de Liquorland, que deseja se tornar escritor famoso. O investigador se envolve nas situações mais estapafúrdias, indicando que tudo isso pode ser ou não ser verdade, com personagens nascidos de uma imaginação perversa, como um anão que administra a hospedaria/hotel/restaurante mais reputado da “Avenida dos Jumentos” – que são matéria prima de alguns dos pratos famosos, como o que une o pênis de um jumento com a vagina de uma jumenta em uma “iguaria de sabor inigualável”... talvez só superada pelas obras-primas dos pratos completos feitos com as criancinhas, que mantêm todo o frescor e vivacidade de pele e cor depois de preparados com a fabulosa técnica desenvolvida na faculdade de culinária local. De permeio, descrições de como as andorinhas produzem os famosos ninhos da sopa (deixo a surpresa para quem ler o livro ou buscar no Google) e dos efeitos sobre a pele, vivacidade e a sexualidade dos consumidores habituais. E tudo termina com um monólogo do próprio Mo Yan autor/personagem – que visita Liquorland para escrever a biografia do tal anão durante o festival da “bebida dos Macacos Brancos”, beberagem portentosa fabricada por um bando de macacos de uma montanha próxima – e não aguenta o tranco dos bons bebedores locais.

Se isso é ser escritor oficial e queridinho das autoridades chinesas, sei não...!

Aqui no Brasil achei a referência de que uma obra de Mo Yan já está publicada. Mudança, relato semibiográfico que faz parte de uma coleção dirigida pelo Tariq Ali, e Rãs, que brevemente será lançado pela Companhia das Letras. Em Portugal há uma edição de Peito grande, ancas largas, que andou proibido na China (mais razões para achar que o autor não é oficialesco), também disponível na Amazon, em e-books.

Comentários e opiniões são bem-vindos no meu blog, O Xis do Problema, www.oxisdoproblema.com.br

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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