Uma das notícias da semana passada foi a de que os herdeiros de José Saramago (há outro além de d. Pilar?) dispensaram a agência Literária Mertin de administrar os direitos autorais do falecido, transferindo-os para a agência de Andrew Wilye. Wylie é um agente poderoso, briga com muita gente – inclusive com a Amazon – e é conhecido, entre outros epítetos, como “Chacal”. Razão: costuma roubar clientes de outras agências sem dó nem piedade. Wylie costuma enfrentar inimigos poderosos. Definitivamente não gosta da Amazon e tentou lançar uma editora de e-books com os títulos de seus autores para ficar fora da varejista. Não deu certo.
É poeta (pelo menos publicou uma coletânea de poesias, e filho de um antigo editor-chefe da Houghton-Mifflin). Quem já visitou seu escritório em Nova York diz que parece mais o saguão do departamento de letras de uma universidade que um escritório comercial. E Wylie se gaba de ser um agente dedicado à qualidade literária, embora quem entre no site da agência possa se perguntar se isso de aplica ao Rei Abdulah II, da Jordânia (cuja única obra conhecida é um ensaio intitulado Our best last chance – the pursuit of peace in a time of peril). O rei está acompanhado de mais um bom bocado de políticos e homens de negócio (Al Gore, Bill Gates, Kissinger, etc). E, sem dúvida alguma, de uma seleção estelar de escritores vivos e mortos. Alas, diriam os franceses.
Ano passado Wylie conseguiu uma associação com a mais conhecida agente literária do mundo hispânico, Carmen Balcells, a grande responsável pelo estouro da literatura latinoamericana em espanhol na década de 1960. A associação Wylie-Carmen Balcells prevê a incorporação total da segunda pela primeira. Carmen Balcells já demonstrou, em várias ocasiões, um certo cansaço e vontade de se retirar. Seu plantel de autores é uma aquisição de estrelas latinoamericanas e espanholas por atacado, e abre longas avenidas para o crescimento de Wylie.
E agora, Saramago.
Provavelmente algum jovem estagiário da agência Wilye, com doutorado em literatura portuguesa, está vasculhando tudo o que o de cujus deixou em sua casa, atrás de anotações em agendas, cartas, bilhetes, e etc. Tudo que possa ser transformado em “produto” editorial e vendido. E é possível que aumente a venda de direitos para cinema, televisão, rádio, adaptações para quadrinhos, peças de teatro e o que mais for possível.
Evidentemente, é isso que atraiu os herdeiros (ou a herdeira, sei lá). A Agência Mertin efetivamente tem uma tradição de trabalhar com editoras, mas não de explorar os acervos de modo tão exaustivo como Wylie. E, ao que parece, também não tem os amplos contatos que o gringo tem com Hollywood e os demais centros de produção de material com direitos conexos. Mas, devo dizer, não sei o alcance do trabalho da Nicole Witt, a atual dona da agência, nessa área. Talvez ela possa comentar isso depois.
O episódio Saramago me fez pensar em algumas questões relacionadas com a evolução dos direitos autorais e, principalmente, dos prazos e da transmissão de direitos.
É bom lembrar que, em seus primórdios, as iniciativas de proteção dos direitos do autor visavam evitar as contrafações (que aconteciam com certa frequência no começo da imprensa, como mostra Andrew Pettegree no seu The book in Renaissance. Era comum uma versão “primitiva”, digamos, do Creative Common: o cara pegava a obra de um, dava uma “melhorada” e soltava como se sua fosse). Tentava proteger os direitos de publicação do autor por um tempo limitado, e sempre supondo que ele estivesse vivo: 14 anos foi a marca inicial, período renovável.
Bom, a coisa foi evoluindo, mas é interessante notar uma distinção entre duas vertentes de proteção. A vertente francesa protege especificamente a produção intelectual, as “ideias” expressas, de alguma maneira, nas obras de arte. A versão anglo-saxônica repousa muito mais na versão contratualista da proteção da licença de publicação, com ênfase muito menor nos direitos morais do autor. Por isso mesmo, a Convenção de Berna só foi integralmente aplicada no Reino Unido a partir de 1988, seguida pelos EUA em 1989. O outro ponto importante da Convenção era a extensão internacional da proteção outorgada pelas leis nacionais, que anteriormente só valiam para o país e seus nacionais. Dickens, por exemplo, reclamava ser pirateado nos EUA, e respondiam que ele devia ficar feliz por ser popular lá, e deixar de ser mercenário... (Não sei onde escuto isso de vez em quando ainda hoje. Vocês lembram?).
A ênfase nos direitos morais da versão da Convenção de Berna (cujo grande impulsionador foi Victor Hugo e sua Societé des Gens de Lettres e depois a Association Littéraire et Artistique Internationale (ALAI)) levou a que, em sua primeira versão, os direitos não tivessem prazo de validade. Na versão de 1948 se estabeleceu que os direitos seriam válidos até 50 anos depois da morte do autor. Atualmente, inclusive na nossa legislação, esse prazo se estendeu até os 70 anos depois da morte do autor.
Os interessados?
Evidentemente, os herdeiros.
O equilíbrio entre essa nova versão patrimonialista dos direitos autorais, estendendo-se a 70 anos posteriores à morte do autor, suscita questões sérias. Setenta anos, convenhamos, passa além da vida previsível dos sucessores diretos – esposa ou filhos. Tornou-se, claramente, interesse de empresas que faturam sobre o espólio, particularmente de autores que se tornaram marcas internacionais importantes. O balanço disso com o interesse público é algo que merece sempre uma boa discussão. Qual o tempo justo de validade da transmissão dos direitos autorais para herdeiros?
Já estamos aqui longe das questões de contrafação e do direito do autor ganhar sua vida com o que produz, e entramos no coração do sistema capitalista e do direito de herança
Mas, no caso, principalmente dos direitos açambarcados por grande corporações.
A Walt Disney é, hoje, a principal defensora desse status, e advoga um aumento ainda maior do prazo. Não quer perder o controle sobre o pato, o rato e seus comparsas, de modo algum./div>
Mas, sobretudo, não quer perder o direito da marca. Agentes como Wylie e outros trabalham para garantir aos herdeiros, mais que a proteção sobre as obras originais, a proteção da marca e a geração de subprodutos os mais variados. Como o morto é morto e não chia, vemos com frequência a publicação de coisas que os próprios autores não desejavam publicar. Mas que os herdeiros querem faturar.
Esses são os herdeiros vivíssimos dos direitos autorais, para os quais vale mais a marca que a integridade do legado.
As brigas que acontecem em torno disso são trágicas e lamentáveis. Como não quero processos e queixas nas minhas costas, nem vou citar fatos conhecidos de disputas entre irmãos sobre o controle de direitos, que muitas vezes fizeram que obras importantes da nossa literatura deixassem de estar acessíveis.
Os muito vivos, às vezes, prejudicam a si mesmos. Mas os vivíssimos sempre conseguem faturar.
Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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