Uma das lacunas mais evidentes na legislação de direito autoral vigente é a que diz respeito às chamadas “obras órfãs”. O que é isso? A lei de direitos autorais vigente estabelece dois parâmetros de tempo para a validade dos direitos de um autor sobre sua obra. O primeiro, evidentemente, é o da vida do autor. Depois que este morre, entretanto, seus herdeiros mantêm direitos sobre a obra pelos setenta anos consecutivos ao falecimento. Assim, em 2013, estarão entrando em domínio público obras de autores – sejam essas originárias ou derivadas (traduções e adaptações) – que tenham morrido em 1942 (a contagem se processa a partir de janeiro do ano seguinte ao falecimento).
Vejam bem, a validade do direito autoral não se dá a partir da data de publicação, e sim o da vida do autor e dos setenta anos decorridos depois de sua morte.
A chamada obra órfã é aquela sobre a qual os direitos autorais ainda são vigentes, mas que a) não se sabe com certeza se o autor está vivo, ou b) no caso de falecimento, se os setenta anos já transcorreram, e quem seria o herdeiro ou herdeiros dos direitos morais e patrimoniais da obra.
Acrescente-se aos problemas relacionados com o uso de tais obras a extensão ou restrição que se aplica ao conceito de fair use, que limita as cópias a pequenos trechos, tais como os usados comumente em citações.
As restrições da legislação são bem abrangentes. Por exemplo, a lei especifica (art. 29, alínea X), que está protegida, inclusive, “a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero”.
Essas disposições estão previstas no escopo das diferentes versões da Convenção de Berna.
Antes do advento das técnicas modernas e processos de digitalização, essa questão era pouco sentida e mencionada. Os livros eram eventualmente depositados em bibliotecas, onde a consulta se dava pessoalmente. As eventuais reedições dessas obras exigiam do editor a pesquisa sobre aquela obra específica, para garantir a legalidade da publicação.
(Evidentemente esse cuidado era desprezado por editoras picaretas e irresponsáveis, ladras de traduções antigas, piratas do trabalho alheio, como sabemos dos vários casos descobertos pela Denise Bottman em seu blog Não gosto de plágio.
Ou seja, o problema de armazenamento não se colocava na prática: os livros estavam na biblioteca, e pronto.
A questão entrou em evidência com a tentativa do Google de digitalizar o universo publicado e guardado nas bibliotecas. Era a tentativa de tornar disponível, em formato digital, tudo o que estava impresso.
As reações a tal projeto foram imensas, seja por parte de vários editores, seja por parte dos autores. A Author’s Guild, o sindicato dos escritores dos EUA, entrou na justiça contra o projeto.
O Google desistiu do projeto universal, e continua digitalizando obras em domínio público e, as que ainda estão protegidas, com licenças de editoras e autores. O comércio eletrônico de livros da empresa se fundamenta nesse projeto, já alçado a outra dimensão.
A desistência do Google não eliminou o problema. Todos os projetos de bibliotecas digitais, de caráter mais ou menos universal, esbarram no mesmo obstáculo. Robert Darnton tratou do assunto em sua participação no Roda Viva há alguns meses, pois isso afeta diretamente o projeto de Harvard ao qual ele está vinculado.
A proposta que o Google veiculou em uma tentativa de acordo com autores e editores nos EUA era a de constituir um fundo no qual seria depositado o equivalente aos direitos autorais devidos pelo uso dessas obras órfãs. Esse fundo seria aplicado e pagaria os autores que viessem a ser identificados. Nos casos em que finalmente se comprovasse que a obra entrou em domínio público, esses recursos seriam usados em programas de estímulo à leitura e similares, definidos pelo conselho constituído com a participação de representantes de todas as partes, e que administraria o fundo.
Essa proposta está morta e enterrada. Mas o problema subsiste.
O fato é que existe uma enorme riqueza de obras literárias, ensaios e obras de não ficção que se encontram nesse limbo legal, e que poderiam voltar a circular. Ou, pelo menos, estariam facilmente acessíveis em acervos digitalizados, públicos ou privados (uma das razões para o combate ao Google era que a extensão do projeto de digitalização colocava em mãos privadas uma fabulosa quantidade de textos, dificultando a posterior apropriação pública e social desses conteúdos).
A UNESCO desenvolve o projeto da biblioteca digital, a World Digital Library que, no Brasil, foi assumido pela Biblioteca Nacional, que está progressivamente construindo a Biblioteca Nacional Digital do Brasil. As duas iniciativas, entretanto, restringem os acervos digitalizados às obras de domínio público.
Essa lacuna na legislação é um dos pontos importantes na eventual atualização de nossa legislação de direitos autoral, que anda perdida lá pelo Ministério da Cultura. A “turma do almoço grátis”, obviamente, quer a liberação do uso desse material, de modo irrestrito e gratuito. Misturados com editores picaretas, do tipo dos denunciados pela Denise, querem “resolver” o problema desrespeitando o trabalho dos outros.
O fato é que esse tópico merece uma discussão mais ampla. Está inserido na questão do uso digital das informações, mas tem características próprias. Quem sabe uma solução semelhante à proposta pelo Google de criação de um fundo específico não seria interessante?
Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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