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(Des)acordo ortográfico
PublishNews, 29/01/2013
(Des)acordo ortográfico

Um dos assuntos dos últimos dias foi o adiamento da etapa final da dita Reforma Ortográfica para 2016. Três anos a mais. A Academia Brasileira de Letras (ABL) bateu os pés e anunciou que não irá mais propor à ONU a proposta de tornar o português idioma de trabalho oficial da entidade.

Sou vítima de reformas ortográficas – eu e todos alfabetizados antes de 1971. Quando frequentava a escola primária, d. Elza Freitas Pinto, minha professora do primeiro ano do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, em Manaus, nos ensinava pelas regras ortográficas enunciadas pelo vocabulário ortográfico de 1943, que quase foram reformadas em 1945, por um acordo ortográfico entre Brasil e Portugal (que falava também em nome de suas colônias, pois ainda era o paizinho do lusotropicalismo), mas que acabou por não ser ratificado pelo Brasil.

Só o vocabulário do primeiro parágrafo já me denuncia. Quem sabe, hoje, o que é “curso primário” e “grupo escolar”?

Essa ortografia era o inferno dos acentos diferenciais, uma profusão de diacríticos obrigatórios para diferenciar palavras “homônimas homófonas homógrafas”. E tome a aprender que o particípio passado do verbo “poder” devia ser grafado com circunflexo (pôde), e que o presente do indicativo o dispensava. Pode? E era preciso saber as regras direitinho. Caso contrário, o ditado (ainda fazem isso no curso fundamental?) vinha cheio de marcas vermelhas.

Em 1971, um baita alívio. Eu já estava no ginásio (sabem o que é?) quando foi decretada a extinção da maioria dos acentos diferenciais, e a coisa ficou bem mais fácil.

Tudo isso com o pano de fundo das pinimbas entre a Academia de Ciências de Lisboa e a nossa Academia Brasileira de Letras. A lisboense, mais provecta (fundada em 1779, no reinado da Maria Louca, a mãe do frangófilo D. João VI), se achava – e se acha – dona da língua. Afinal, como poderia dizer o Conselheiro Acácio, se é português, é de Portugal. A ABL, caçula, se enchendo de ares pelo tamanho da população brasileira, também quer mandar no pobre do português. Afinal, Portugal é praticamente equivalente a Pernambuco, em área e população.

Um exemplo das briguinhas é o acordo frustrado de 1945. Dizia-se que os brasileiros teriam que fazer modificações mais profundas (em relação ao vocabulário de 1943), que os portugueses. Daí nosso ínclito Senado Federal não querer ratificar o acordo.

Chegamos a 1990. Ah, 1990! Governo Sarney. Governo do poeta e romancista, “cultor da língua” e mentor, com José Aparecido e Antonio Houaiss, do novo acordo. Sarney não conseguiu assiná-lo, pois o ato formal deu-se apenas quando Collor já estava no poder. Mas toda a tramitação e o esforço diplomático brasileiro se deram em seu governo.

Não vou nem entrar aqui nos meandros dessa

Nos discursos, os principais objetivos do acordo ortográfico seriam facilitar o intercâmbio de livros entre Brasil, Portugal e PALOP (Países de Língua Oficial Portuguesa) e facilitar a adoção do português como língua de trabalho das Nações Unidas e seus órgãos.

Disputas linguísticas a parte, esses dois objetivos são balelas. O tal acordo foi construído a partir da imensa vaidade de Antonio Houaiss, que convenceu seus pares da ABL, envolveu Aparecido e Sarney e foi abraçado pelo Itamaraty como ponto de trabalho na tentativa de influenciar os países africanos ex-colônias de Portugal. Inventaram para tanto a CPLP – Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa. Afinal, ficaria muito feio criar um organismo que tivesse como escopo atrair para uma esfera de influência brasileira, as “ex-colônias” africanas. A experiência francesa da francofonia foi a inspiradora da manobra.

Essa história do português como língua oficial dos países emancipados da colonização portuguesa na África e na Ásia (Timor Leste) é um absurdo. O português só é falado homogeneamente em Portugal e no Brasil. Em todos aqueles países o português é falado tão somente pelas elites, e na maioria dos casos não consegue ser usado nem mesmo nas relações entre os governos e os cidadãos. Em todos eles existem extensos programas de educação bilíngue, onde o português entra como segundo idioma, depois das línguas locais.

Evidentemente, o esforço de escritores e políticos dos países recém independentes de manter o português como língua franca oficial foi altamente louvável. Se não fosse a ação de Pepetela e de outros, teriam talvez adotado alguma das línguas locais como idioma oficial, o que acentuaria o isolamento dos novos Estados. O português deveria então ser língua oficial, e pouco importa que adotassem a ortografia lusitana.

O argumento de que é necessária a unificação para que o português possa ser adotado como língua de trabalho da ONU é patético. A ortografia do inglês também varia entre a dos EUA, a da Inglaterra e das ex-colônias. As diferenças léxicas e sintáticas também são significativas, não apenas entre os dois países, como também entre as dezenas de outras nações onde o inglês é falado (aliás, nos EUA não existe a caracterização do inglês como “língua oficial”. Isso só entrou na pauta da extrema direita americana na pueril tentativa de impedir a crescente influência dos falantes de espanhol por lá). Existe “acordo ortográfico” entre EUA e Inglaterra, mais Canadá, Austrália, Nova Zelândia e sabe lá quantos mais países da antiga Commonwealth? Nada.

Essas diferenças não impedem nem dificultam o uso do inglês, não apenas como língua de trabalho oficial da ONU como também como principal idioma de diplomacia e dos negócios. O português não é ainda adotado como língua de trabalho simplesmente porque não é relevante para o funcionamento da ONU. Será adotado, eventualmente, se o Brasil conseguir a almejada cadeira permanente no Conselho de Segurança, e isso se a diplomacia trabalhar muito e não ficar perdendo tempo com essa história de unificação ortográfica. Quando o embaixador português falar cimeira e o brasileiro disser cúpula, os taquígrafos registrarão cada uma, os tradutores para o inglês traduzirão as duas para summit e estamos conversados.

As diferenças ortográficas nunca impediram a circulação de livros de Portugal no Brasil e vice-versa. Os fatores condicionantes desse intercâmbio são outros. Passei a juventude lendo traduções do inglês, francês, alemão e outros idiomas menos votados em edições portuguesas. Na época, nos anos 60 e 70, as negociações internacionais de direitos geralmente cediam as traduções para o idioma português sem distinção geográfica, e as editoras lusitanas estavam mais bem posicionadas para negociar muitas traduções.

O desenvolvimento da indústria editorial brasileira liquidou com essa história. Hoje, os direitos de tradução são negociados separadamente para o Brasil e Portugal, salvo raríssimas exceções. Mas ainda tenho, na biblioteca, várias edições dos “Livros do Brasil – Lisboa”, na Coleção Dois Mundos.

O segmento editorial onde o acordo ortográfico teria importância é o dos livros escolares. E nesse, acontece o seguinte: o sistema escolar português, com sua serialização, estruturas curriculares, etc., é a base do adotado nos países africanos, nessa área ainda presos à estrutura colonialista. A diplomacia brasileira nada fez para ajudar tecnicamente os países africanos a desenvolver seus próprios currículos e sistema educacionais. O resultado, obviamente, é que as editoras portuguesas dominam o mercado de didáticos nesses países, direta ou indiretamente.

Além do mais, os recursos para a preparação e edição dos livros escolares são provenientes sobretudo da União Europeia e do Banco Mundial. Os recursos da União Europeia só podem ser usados pelos seus países membros. No caso, Portugal e a Inglaterra, que tem seus pezinhos bem plantados no ensino de idiomas. Os do Banco Mundial que, em tese, poderiam ser disputados pelas editoras brasileiras, ninguém sabe deles por aqui.

Ou seja, essa história de que a unificação ortográfica facilita a circulação de livros na “comunidade lusófona” é bobagem. Até porque, por exemplo, quando se trata de livros infantis, o problema decorrente do uso de putos e raparigas em Portugal não é de ortografia...

Seja como for, para o bem e para o mal, esse bendito (des)acordo ortográfico já está solidamente implantado no Brasil. O MEC há anos exige que essa ortografia seja usada nos livros escolares. Os custos de adaptação já foram absorvidos pelas editoras por causa do mercado interno e da exigência do MEC, e não devido à possibilidade de aumentar as vendas em Portugal e África. Os jornais também já adotam a nova ortografia.

No segmento de literatura e não ficção, os novos livros já são editados na ortografia houaissiana. Reedições, obviamente, só dos livros que vendem bastante. Os antigos continuam com tremas e hifens à moda anterior.

Se Portugal – tal como o Brasil em 1945 – bater o pé e voltar atrás no uso da nova ortografia, isso não afetará em absolutamente nada nem a reinvindicação do português como idioma de trabalho nem a circulação de livros daqui pra lá e de lá pra cá.

O triste é que não se pode nem usar a expressão do bardo inglês “Much ado about nothing”, ou muito barulho por nada (em versão ortograficamente neutra), porque, infelizmente, muita grana já rolou, muitos especialistas vivem de “esclarecer” o acordo e muitas vaidades continuam em jogo.

Da minha parte, os problemas ortográficos são resolvidos, nessa altura da vida, pela equipe de Mr. Gates. O Office tem corretores para todas as versões do português, além de dezoito versões de inglês, vinte e uma de espanhol, quinze do francês, dezesseis de árabe, duas de bósnio e azeri (em alfabetos latino e cirílico, seja lá onde se fala azeri), cinco de chinês, além de um belo sortimento de outros idiomas como o canuri, o cherokee, o concani, o divehi, o edo, o mapudunguen e vários outros. Provavelmente uma é ferramenta usada em todos os organismos internacionais, e se algum dia eu escrever alguma coisa nessas línguas o Office corrigirá a ortografia, embora não possa garantir a inteligibilidade.

Recuso-me a entrar no tipo de discussão como a expressada sobre o acordo por professores lusos em uma revista de pedagogia: “Objecto de polémica, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa está em vias de entrar em vigor. Alguns, considerá-lo-ão um passo em frente no projecto de unificação ortográfica da Língua Portuguesa como fundamento da unidade da lusofonia; outros, pelo contrário, hão-de considerá-lo como uma cedência da potência colonizadora aos países colonizados, sobretudo ao Brasil, uma vez que os restantes países lusófonos utilizam a grafia portuguesa.” (TAVARES, Manuel; RICARDO, Maria Manuel C.. “Breve história do acordo ortográfico”, Rev. Lusófona de Educação, Lisboa, n. 13, 2009, acessado em 28 jan. 2013).

Eu vou lá me meter numa “cedência da potência colonizadora” dessas? Cáspite.

No mais, meus caros, como dizia o Poeta da Vila, o que nós falamos “com voz macia, é brasileiro, já passou de português”.

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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