Na peça “Bom Retiro 958 metros”, do grupo Teatro da Vertigem, dirigida por Antônio Araújo, em cartaz em São Paulo, uma das referências importantes é “el dibuktronic”, alusão ao texto teatral O Dibuk, tradicional do repertório judaico. Lenda e crença popular, o dibuk é uma alma errante, um espírito atormentado e endemoniado, neste caso de um morto que retorna do passado e de outro mundo para fazer cumprir, por meio de uma possessão, uma promessa de liberdade e de casamento. Além do aspecto místico e da história universal de amor, existe em O Dibuk um denso contexto histórico e os conflitos em torno da tradição e de questões sociais.
Escrito em ídiche e depois em russo por Sch. An-Ski, pseudônimo de Schloime Zainvil Rapaport (1863-1920), o texto estava inserido em um projeto cultural e de militância política de esquerda sob a égide da Expedição Etnográfica Judaica que, por três anos, a partir de 1912, pesquisou e coletou manifestações da cultura popular sob a Rússia czarista e planejou a criação de um Museu Etnográfico. Natural da Bielorrússia, An-Ski chegou a se eleger deputado com a Revolução de 1917.
A peça Entre Dois Mundos – O Dibuk. Uma Lenda Dramática, ou simplesmente O Dibuk, já teve três edições em português (Perspectiva, 1952 e 1988 e Brasiliense, 1965), com tradução de J. Guinsburg, prefácio de Anatol Rosenfeld, a última delas com uma nova tradução e textos de apoio, fotografias e críticas de montagens teatrais assinadas por Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado, Jefferson Del Rios e o próprio J. Guinsburg, incluindo as de uma encenação no Teatro de Arte Israelita Brasileiro (Taib) em 1963 e outra, para dois atores, dirigida por Iakov Hillel.
Exatamente um século depois da expedição russa de An-Ski, a peça “Bom Retiro 958 metros” propõe uma espécie de expedição etnográfica noturna pelas entranhas presentes e passadas do bairro – incluindo o Taib onde O Dibuk foi encenado (pela última vez) em 1963 –, percorrendo a estranha beleza das vitrines do comércio e do consumo da moda, com seus manequins torneados, as faces da imigração coreana e o duro trabalho dos imigrantes bolivianos, e passando por ruínas reais e imaginárias de lugares da memória judaicos. Tudo isso na rua e com o barulho do trem da antiga Estrada de Ferro Santos-Jundiaí que torna presente a origem do bairro, sempre na fronteira das rotas da produção, do comércio, do trabalho e da imigração.
No começo da peça um letreiro anuncia que vamos entrar no “Lombroso Fashion Mall”. Dificilmente poderia haver conjugação mais estranha do que esta entre a felicidade e a beleza prometidas pela moda e pelo consumo do shopping, um bairro cuja marca principal é ser um lugar de imigrantes desde a inauguração da Estação da Luz em 1867, e a memória do médico Cesare Lombroso, personagem central na história das ideias da “transmissão hereditária” de um inato “atavismo criminoso” – para ele a epilepsia, por exemplo, era um sinal de “degenerescência moral” (é imperdível o capítulo escrito por Stephen Jay Gould em A Falsa Medida do Homem, Ed. Martins Fontes).
O nome da Rua Cesare Lombroso foi dado, sem ironia, em homenagem ao médico italiano quando a zona da prostituição foi expulsa nos anos 1950 e o nome Rua Itaboca foi suprimido da geografia urbana local. Ficou a rua vizinha, Aimorés, que a memória do bairro cultiva como “Rua dos Amores”...
Na peça, dentro do shopping, em cenas e diálogos antológicos no texto de Joca Reiners Terron, uma manequim defeituosa em busca de emprego conversa com uma faxineira, que sonha com seu momento de patroa disney, sobre os ideais de beleza dos circuitos da moda. Uma costureira imigrante fala dos seus sonhos enquanto trabalha na vitrine, expondo as fraturas sociais desse universo faiscante. Esta abordagem da peça é particularmente forte porque crava uma marca de sofrimento, dor, mas também de sonhos, sobre a mitologia da imigração como sinônimo de trajetórias bem sucedidas, imaginário que se tornou cartão-postal do Bom Retiro, com seus restaurantes e turismo étnico.
Os atores-consumidores vagam pelos corredores do shopping, com suas sacolas de compras, e depois pelas ruas como nômades urbanos, que o consumo não redime e que a cidade obriga ao desterro interno. A própria produção da peça faz o mesmo percurso com seus carrinhos e equipamentos ambulantes, que lembram uma fuga de imigrantes, uma marcha de despossuídos, procissão rumo ao exílio, compondo cenas épicas e caóticas no meio das ruas do bairro, lembrando almas penadas e dibuks em busca de reparação e de justiça.
Ao longo deste caminho e também no paredão de pedra que separa o bairro da linha férrea, a personagem de uma prostituta lembra as “polacas” (as “noivinhas”) e o drama das mulheres que formaram uma rede de imigrantes-prostitutas da Europa Oriental, história contada por Beatriz Kushnir em Baile de Máscaras. Mulheres judias e prostituição (Imago) e Moacyr Scliar em O Ciclo das Águas (Ed. L&PM), e que pode ser também conhecida por meio dos túmulos do Cemitério Israelita de Cubatão, tombado como patrimônio histórico pela prefeitura local.
Ao chegar ao Instituto Cultural Israelita Brasileiro (Icib, a “Casa do Povo”, inaugurado em 1953 como um centro de esquerda judaica em São Paulo e em memória do Holocausto) e principalmente ao Teatro de Arte Israelita Brasileiro (Taib), a peça ganha uma dramaticidade intensa na relação com a história do bairro. De uma janela iluminada, o público de pé na Rua Três Rios vê estantes de uma biblioteca abandonada.
O teatro é hoje uma ruína física, amplificada pela lembrança – entre os anos 1920 e 1970 – do ativismo intelectual e político em São Paulo, com uma cultura judaica laica, progressista e participante das lutas sociais do País, as companhias teatrais que incluíam a cidade no circuito internacional, os grupos teatrais locais, a escola Scholem Aleichem, o jornal Nossa Voz.
A memória deste teatro sobrevive rarefeita entre antigos ativistas e em poucos livros, entre eles Memórias da minha juventude e do teatro ídiche no Brasil, de Simão Buchalski (Ed. Perspectiva) e O Teatro Ídiche em São Paulo, de Berta Waldman (Ed. Annablume). O Bom Retiro tem no escritor Eliezer Levin, em livros como Bom Retiro (Perspectiva), o cronista do seu passado. O livro juvenil O Golem no Bom Retiro (Edições SM), de Mário Teixeira, traz para a atualidade outra lenda, a do Golem, que já ganhou versões em português de Issac Bashevis Singer e Elie Wiesel.
Na peça de Sch. An-Ski, odibuk é um mensageiro entre dois mundos e volta para reparar uma promessa não cumprida, fazer justiça ou consumar misticamente um amor não realizado. Neste “Bom Retiro 958 metros” o teatro é mensageiro da memória e do cotidiano dos habitantes da cidade, passados e presentes, e de ruínas pessoais e arquitetônicas tão próximas e tão esquecidas no centro paulistano. Histórias sofridas e cheias de sonhos e esperanças de imigrantes ontem e hoje, da mesma forma que histórias sofridas de parte da população da cidade em um bairro que simboliza e marca em São Paulo, provavelmente mais do que qualquer outro, o signo da diversidade étnica e cultural da metrópole, fronteira da esperança, mesmo que dolorosa, da realização pelo trabalho e de inclusão neste mundo chamado São Paulo.
Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.
Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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