Acompanho com a maior atenção o desenvolvimento da ação que o Departamento de Justiça dos EUA promoveu contra a Apple e mais cinco editoras americanas, para obrigá-las a abandonar o chamado “modelo de agenciamento”. Para resumir a questão: tradicionalmente o sistema de mercado de livros norte-americanos funciona de modo bem parecido com o brasileiro. As editoras estabelecem um preço de capa e, a partir dele, vendem com desconto para a cadeia de mediação, distribuidores e livrarias. Lá, como aqui, as cadeias sempre obtiveram mais vantagens que as livrarias independentes, dentro de algumas limitações da legislação que obriga a oferta das mesmas condições para compras idênticas. Como as cadeias compram em quantidades muito maiores, se justificava por aí o oferecimento de vantagens adicionais a elas.
Lá como aqui, o varejista também pode vender os livros a um preço menor que o oficial, de capa. E as cadeias, com mais vantagens, oferecem sempre descontos maiores. Tal como aqui, esse processo foi forçando o fechamento de centenas de livrarias independentes. E as editoras pouco se lixavam com isso. Administravam menos contas e o volume de vendas aumentava sempre, inclusive depois da internet.
E, particularmente, depois que a Amazon entrou no mercado.
Jeff Bezos compreendeu perfeitamente o truque que possibilita às livrarias sobreviver, e o explorou ao máximo. As livrarias, de fato, são financiadas pelas editoras, que incorrem em todos os custos de produção editorial, impressão e distribuição, e vendem a prazo para as livrarias, que inclusive têm direito à devolução dos exemplares não vendidos.
Só que, nas livrarias de tijolo, os livros devem estar nas lojas para serem examinados pelos clientes, apesar destas também aceitarem encomendas. A dinâmica de vendas das livrarias tradicionais – sejam de rede ou independentes – exige a presença física dos livros na loja. Pelo menos de uma boa parte deles, nem que seja uma seleção que o livreiro faça de acordo com a vocação de sua clientela e de seu ponto de venda.
A Amazon começou invertendo esse sistema. Funcionando exclusivamente online, desenvolveu sistemas de busca e atendimento que são simplesmente magníficos. Expandiu o uso de metadados para ajudar seus clientes online a escolher os livros. Bomabardeia-os diariamente com ofertas de livros que considera “semelhantes” aos anteriormente comprados, ou que foram comprados por outras pessoas que compraram o mesmo livro que eles compraram. Quem já encomendou algum livro pela Amazon sabe perfeitamente o quanto é eficiente o sistema. E, sobretudo, vende antes de comprar...
A gigante varejista começou com livros, investiu em tecnologia e passou a vender outros produtos, inclusive livros usados, colocados à disposição pelos sebos ou até por indivíduos. Cada vez mais a Amazon é um canal de potencializar vendas.
Os editores, felizes da vida.
Quando a Amazon lançou o Kindle e começou a tornar realidade o mercado de e-books, colocou para seus fornecedores que era necessário vender esses produtos a um preço significativamente menor. As editoras concordaram e estabeleceram preços “de capa” para os livros eletrônicos substancialmente menores que os dos livros impressos.
Só que a Amazon aproveitou a oportunidade para reforçar seu ecosistema, buscando “enganchar” os clientes. O Kindle tem um sistema de DRM proprietário – os livros vendidos para o aparelhinho só podem ser lidos nele – e, principalmente, com a oferta de descontos ainda maiores. Como tinha liberdade de estabelecer o preço de venda, aproveitou para oferecer a maioria absoluta dos títulos ao preço máximo de U$ 9,90.
O resultado é conhecido. Os outros venderores de e-books não conseguiam enfrentar a concorrência da Amazon, pois não dispunham nem da tecnologia nem dos recursos financeiros que a empresa de Bezos já tinha acumulado. Mesmo com a entrada do Nook, da Barnes&Noble, do aparelho da Kobo e outros que foram ficando pelo caminho, a Amazon detinha mais de 80% do mercado de e-books nos EUA, e o caminho para se tornar um monopolista de fato estava aberto.
Quando a Apple lançou o iPad, ofereceu uma alternativa aos editores: os preços seriam definidos pelos editores e a Apple receberia uma comissão de 30% sobre o valor líquido da venda. É o “modelo de agenciamento”.
Com o respaldo desse modelo pela Apple, as grandes editoras passaram a exigir que a Amazon fizesse o mesmo. E, como diz o samba do Billy Blanco, o pistom teve que tocar mais alto porque um pé subiu e alguém de cara foi ao chão na gafieira.
A Amazon, obviamente, não é nenhuma coitadinha e reagiu. Ameaçou tirar o botão de compra rápida dos livros da Macmillan, anunciava que o preço dos livros das editoras que adotaram o modelo era definido por elas, como quem diz, “se fôssemos nós, seria mais barato”.
A legislação de defesa do consumidor dos EUA favorece extremamente esse tipo de prática. Se o preço final é menor, é melhor para o consumidor e quem não aguentar que peça para sair.
A legislação brasileira segue pelo mesmo rumo. Não quer saber de que tipo de produto está tratando. Se há desconto, melhor para o consumidor. O CADE só se preocupa eventualmente com os processos de concentração, oligopolização e monopolização, como temos visto.
Por isso mesmo, as tentativas de estabelecimento do chamado “preço fixo” para o livro, como existe na França e na Alemanha, sempre esbarraram tanto na má vontade das grandes editoras brasileiras – que raciocinam do mesmo modo que suas congêneres dos EUA – como na dos órgãos de defesa do consumidor. Ninguém estranha que jornais sejam vendidos pelo mesmo preço em todas as bancas, mas acha um crime contra o consumidor que os livros possam ter o mesmo preço em todas as livrarias.
Ora, o livro não é um produto qualquer. Essa história de que se vende livros como se fossem sabonetes é pura balela. Não existe meio milhão de marcas de sabonete em nenhum lugar do mundo, mas os títulos disponíveis no mercado brasileiro ultrapassam esse número, mesmo nos cálculos conservadores.
O ecosistema do mercado editorial é fundamental para que haja diversidade de oferta, a famosa bibliodiversidade. O processo de concentração das grandes editoras conduz não apenas à diminuição da oferta de títulos, como também a sua pasteurização, a busca insofreável pelos best-sellers, pelos livros médios que podem vender muito.
Para que exista a bibliodiversidade é fundamental que haja condições mínimas de sobrevivência tanto das pequenas e médias editoras quanto das livrarias independentes. E o “preço fixo” – que não é uma panaceia – ajuda a que isso seja possível.
Tanto é assim que a própria Constituição Federal reconhece a especificidade do produto livro, ao lhe conceder imunidade tributária, complementada há alguns anos pela isenção do PIS/PASEP-COFINS para as editoras e livrarias, salvo as que estejam no regime do SIMPLES.
Nada mais natural, portanto, que o livro tivesse um tratamento diferenciado e regulamentada suas condições mínimas de comercialização, além do incentivo à sobrevivência das livrarias independentes.
A chegada da Amazon no Brasil provoca embates com as grandes editoras, que resistem ao modelo. Espero que consigam. Mas, na hora que a Amazon começar a operar, a pressão de autores e consumidores para que os títulos estejam disponíveis ali será muito grande. Pessoalmente, tenho dúvidas de que consigam resistir à pressão da Amazon para imposição de suas condições, ainda que esta possa ceder em vários aspectos menores.
Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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