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A biblioteca da utopia
PublishNews, 12/06/2012
A biblioteca da utopia

A revista do Massachusetts Institute of Technology, o MIT, publicou recentemente um artigo sobre o projeto da Harvard University de digitalizar os acervos das bibliotecas universitárias. Comentar sobre o assunto vem bem a calhar no contexto das discussões sobre cópias não autorizadas e digitalizadas para difusão pela internet. Quem se dispõe a analisar o assunto com seriedade logo se vê diante da imensidade de problemas e soluções alternativas, que vão muito além da digitalização não autorizada de uns tantos livros de ciências sociais.

O projeto de Harvard descende diretamente do falecido Google Book Search, o projeto que Larry Page imaginou em 2002 e que pretendia digitalizar todos os livros impressos no mundo. Sim. Todos. Só assim, dizia o cofundador do Google, a empresa poderia cumprir sua missão de tornar toda a informação mundial “universalmente acessível e útil”.

O Google desenvolveu uma tecnologia que permitia o escaneamento ultrarrápido das páginas de um livro, com lentes que compensavam a curvatura das páginas provocadas pela encadernação. Aperfeiçoou também seus programas de Optical Character Recognition (OCR), para os mais variados formatos de letras e idiomas, de modo a permitir o funcionamento dos mecanismos de busca.

Quando lançou publicamente o projeto, em 2004, Page conseguiu de imediato a adesão de cinco das maiores bibliotecas do mundo, incluindo as de Harvard e Oxford. E quase imediatamente começaram as reações contrárias ao projeto, geralmente focando no ponto de que este daria à companhia uma posição altamente favorável para a futura comercialização do conteúdo digitalizado, prejudicando outras empresas. Além disso, a concentração dessa informação pelo Google abriria o espaço para a censura e controle da difusão da informação. Note-se bem: comercialização do conteúdo, que passaria a ser acessível, mas não gratuito. O projeto do Google incluía a posterior comercialização – através de e-books – dos livros. E tudo com o devido pagamento de direitos autorais.

A Association of American Publishers e a Author’s Guild – o sindicato dos autores dos EUA –, imediatamente protestaram, considerando que a empreitada, mesmo se permitisse a consulta a apenas trechos de livros na pesquisa, constituía um enorme ataque aos direitos autorais.

O Google propôs um acordo, envolvendo o pagamento de direitos autorais e a venda de assinaturas para acesso ao conteúdo integral dos livros das bibliotecas, o que só aumentou a resistência. Universidades europeias se recusaram a participar e outras iniciativas começaram a ser esboçadas.

Alguns analistas consideram que, se o Google continuasse a escanear com base no “fair use” da Convenção de Berna – e da legislação dos países signatários – e usasse o material tão somente para indexar informações, poderia ter prosseguido. Mas, ao propor o acordo, que teria chancela do judiciário, se meteu num pântano legal que terminou por liquidar o projeto.

Além da acusação de tentativa de monopolizar a digitalização mundial dos livros, alguns pontos finos da legislação de direito autoral se tornaram pedras no meio do caminho do projeto. Um desses é o das “obras órfãs”. O que é isso?

Uma obra impressa é protegida automaticamente pela legislação, mesmo que seu autor, ou autores, não a registrem nos escritórios de direitos autorais de cada país. Mesmo entre as obras registradas, há uma quantidade delas das quais se sabe o nome do autor, mas não se o próprio ainda está vivo e se o prazo de vigência da proteção legal ainda está ativo. Isso sem falar dos livros publicados, mas que saíram do mercado – as leis de D.A. são, hoje, universalmente retroativas. Essas são as “obras órfãs”. Como se pode perceber, mesmo que houvesse a disposição de pagar direitos por sua reprodução, seria muito difícil encontrar os beneficiários. O Google propôs constituir um fundo que recolheria esses direitos até o aparecimento dos autores ou a certeza de que haviam entrado em domínio público, quando então esses recursos seriam revertidos para ampliação de acervos de bibliotecas, programas de leitura etc.

Não adiantou. O acordo foi definitivamente sepultado há alguns meses pelo judiciário dos EUA.

Mas a ideia da digitalização não morreu.

Um dos críticos mais contundentes do projeto do Google foi o historiador Robert Darnton. Sucede que Darnton foi nomeado, em 2007, como diretor do sistema de bibliotecas da Harvard University. A partir dessa posição, tenta por de pé o projeto da Digital Public Library of America. Que, essencialmente, tem o mesmo escopo do projeto googliano: digitalizar tudo.

Diz a matéria da revista do MIT:

“Se bibliotecas e universidades trabalhassem juntas – argumentou Darnton –, financiadas por organizações filantrópicas, poderiam construir uma verdadeira biblioteca pública digital da América. A inspiração de Darnton não veio dos tecnólogos de hoje, e sim dos grandes filósofos do Iluminismo. As ideias circulavam pela Europa e atravessaram o Atlântico no século XVIII, impulsionadas pelas tecnologias da imprensa e dos correios. Pensadores como Voltaire, Rousseau e Thomas Jefferson viam a si mesmos como cidadãos da República das Letras, uma meritocracia de livres pensadores que transcendia as fronteiras nacionais. Era uma época de grande fervor e fermentação intelectual, mas a República das Letras era ‘democrática apenas em princípio’, como Darnton apontou em um ensaio na New York Review of Books: ‘na prática era dominada pelos bem nascidos e pelos ricos’.”

E prossegue a matéria:

“Com a internet, podemos finalmente retificar essa iniquidade. Ao colocar cópias digitais online, argumentou Darnton, podemos abrir as coleções das grandes bibliotecas do país para quem quer que tenha acesso à rede. Podemos criar uma ‘República Digital das Letras’ que seria realmente livre e aberta e democrática e que nos permitiria ‘efetivar os ideais do Iluminismo a partir dos quais foi fundado nosso país’.”

Com um acadêmico de tanto prestígio como Darnton à frente, e princípios tão nobres a justificá-lo, a suposição é de que o projeto poderia avançar sem dificuldades.

Ledo engano.

O sepultamento da proposta de acordo do Google aumentou as expectativas e o projeto de Darnton ganhou apoios importantes, e mecanismos substanciais de financiamento. Começou também a ganhar objeções.

Em maio passado, uma reunião do grupo dos Chief Officers of State Library Agencies (grosso modo, os responsáveis pelos sistemas estaduais de bibliotecas, se tal coisa existisse no Brasil) aprovou uma resolução pedindo que a DPLA mudasse de nome. A razão? Ao se apresentar como “a” Biblioteca Pública do país, a DPLA reforça a “crença infundada de que as bibliotecas públicas podem ser substituídas em 16.000 comunidades nos EUA por uma biblioteca nacional digital”, e que isso dificultaria ainda mais a obtenção de recursos orçamentários para essas bibliotecas. Parou por aí? Não. O projeto foi acusado de arrogante na presunção de que uma única biblioteca pudesse satisfazer as necessidades diferentes do público e de pesquisadores, que são muito diferentes.

E o dissenso continuou. Por exemplo: os arquivos serão centralizados em servidores próprios ou os mecanismos de busca apontariam para os servidores das bibliotecas afiliadas? Que outros materiais, além de livros, seriam incluídos na DPLA? E como a DPLA se apresentaria ao público: com acesso direto ou como uma “câmara de compensação” entre as várias bibliotecas, transferindo o trânsito para os respectivos websites? No mesmo número da revista do MIT que anuncia o projeto de Darnton, é publicado também outro, de autoria de Brester Kahle e Rick Prelinger, que afirma que o projeto centralizador de Darnton pode ser tão perigoso para a liberdade de expressão quanto era o do Google. E Kahle é o fundador do Internet Archive. E os lançamentos? Darnton, por exemplo, diz que só deveriam ser digitalizados os livros com mais de dez anos de lançamento, para “ficar de fora das questões comerciais”. E os metadados, essenciais para a pesquisa e que, como “banco de dados”, são eventualmente produzidos por outras empresas, que prestam serviços para editoras e bibliotecas, e têm uma proteção específica de uso?

Porque, de fato, voltou com toda a força a questão dos direitos autorais. Para o Google e para a DPLA, essa é uma questão não resolvida. Para alguns dos envolvidos, só poderia ser solucionada com medidas internacionais, como uma revisão da Convenção de Berna que diminuísse o tempo de vigência da proteção (hoje é de 70 anos após a morte do autor, na maioria dos países) e estabelecesse outras exceções, todos os dois assuntos muito controversos. Não apenas por parte das editoras e dos próprios autores – os de sucesso cuidam muito bem do seu patrimônio! –, mas também pelos estúdios e outros produtores de materiais audiovisuais.

Além dos direitos autorais, está subjacente também uma questão de patrimônio. Afinal, essas bibliotecas foram financiadas com recursos de várias fontes para aquelas universidades, e não apenas são seu patrimônio como geram renda, de diferentes maneiras, para seu sustento.

O pano de fundo disso tudo é o das condições para a apropriação social da produção intelectual individual. É certo o grande avanço, desde o Iluminismo, do reconhecimento da autoria: a obra é a expressão de um labor intelectual próprio e personalíssimo (ainda que possa ser coletiva), e isso gera direitos do(s) autor(es) sobre sua fruição, inclusive financeira, ainda que por um período determinado de tempo (que foi aumentado progressivamente nos dois séculos e meio desde que as primeiras leis de direito autoral foram promulgadas). O “domínio público” se estabelece depois desse período de apropriação individual.

Não vale o argumento de que cada autor produz suas obras através das leituras de outros, já que, de qualquer maneira, cada leitura gera uma apropriação e uma expressão individual do conjunto dos conteúdos. Se colocarmos dez “intelectuais leitores” lendo os mesmos dez livros, o que cada um deles irá concluir e eventualmente produzir a partir dessa leitura certamente será diferente da produção dos demais.

Na verdade isso tudo remete à grande questão da apropriação individual do fruto do trabalho versus a apropriação social, coletiva. Algo que outros filósofos debatem também desde o século XVIII, e que encontrou uma expressão sintética no século XIX: “De cada qual segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades”, disse o filósofo de Trier, um tal de Karl Marx.

Mas isso exige outro tipo de sociedade, de organização social. Por enquanto, no regime capitalista, o caldo engrossa tanto com a apropriação do trabalho físico quanto do trabalho intelectual.

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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