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Obra coletiva
PublishNews, 21/03/2012
Obra coletiva

O coletivo de camelos é...? Perguntinha difícil para o primário, e, ainda hoje, para quem não tenha boa memória.

Coletivo vem de colecionar, coligir, do latim colligere. Pois a ação coletiva é vista contemporaneamente como uma forma de ação de grupos, altamente facilitada e multiplicada pela tecnologia que permitiu a criação das redes sociais. A mais recente e crescente expressão dessa ação coletiva se situa na área de financiamento.

O chamado “crowd funding” (em tradução livre, arrecadação em massa), é um método de captação de recursos através de sites na internet, que apresentam projetos culturais que buscam financiamento e quanto cada um almeja obter. As pessoas interessadas podem selecionar os projetos e contribuir com pequenas somas até atingir o limite estabelecido, sendo que as doações são dedutíveis do imposto de renda, principalmente nos EUA (veja a matéria do New York Times sobre isso).

Antes da disseminação do financiamento coletivo, o direito autoral via o grupo mais como criador ou produtor de obras, as chamadas obras coletivas. Basta ler o conceito que hoje temos na lei 9.610/98, no art. 5º, alínea h: “coletiva - a criada por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma”.

Exemplos? Filmes, dicionários, enciclopédias, jornais, revistas de artigos científicos, composições musicais, obras multimídia, e por aí vai. A primeira diferenciação entre obras coletivas, e talvez a mais relevante, seguida dos respectivos exemplos, é esta: aquelas em que é possível identificar as diversas participações, como os atores do filme e os compositores da respectiva trilha sonora, os colunistas e fotógrafos de jornais, a música e a letra de composições musicais; e aquelas em que, geralmente, não é possível se fazer essa identificação, como os artigos escritos a quatro mãos, as melodias compostas por mais de uma pessoa, as obras artísticas feitas em grupo, como instalações, ou grafitti.

Após esses exemplos, trago uma análise com enfoque mais jurídico, pelo prisma da responsabilidade. Releia a tal “alínea h” e veja se nela não se enquadra como luva a atividade de um jornal ou na programação da televisão. Alguém cria e organiza uma obra, composta pelo trabalho de vários autores, e a publica – isto é, torna pública, por qualquer meio, não necessariamente o impresso – sob seu nome ou marca. Então existe um responsável – o organizador – do jornal, do livro, da televisão, que acaba recebendo os lucros, quando existentes, mas que também pode ser processado, muitas vezes sem ele mesmo ter escrito nada.

Além da responsabilidade do organizador, volto à possibilidade – ou não – de se identificar o trabalho dos autores, e, no caso positivo, de se poder atribuir a cada um deles a proteção isolada do Direito. Sobre isso, transcrevo – perdão pelo juridiquês, mas é necessário – mais um artigo da 9.610/98, a lei de Direito Autoral brasileira:

Art. 17. É assegurada a proteção às participações individuais em obras coletivas.

§ 1º Qualquer dos participantes, no exercício de seus direitos morais, poderá proibir que se indique ou anuncie seu nome na obra coletiva, sem prejuízo do direito de haver a remuneração contratada.

§ 2º Cabe ao organizador a titularidade dos direitos patrimoniais sobre o conjunto da obra coletiva.

§ 3º O contrato com o organizador especificará a contribuição do participante, o prazo para entrega ou realização, a remuneração e demais condições para sua execução.

De acordo com essa proteção, e seguindo os três parágrafos acima, (a) pode-se permitir que o autor de uma obra científica impeça a publicação de artigo de sua autoria em nova edição de livro da qual divirja por algum motivo, ou que o ator convertido a religião severa não queira seu nome vinculado a obra teatral que criou; (b) o organizador, apesar de não ser o criador, é o titular dos direitos sobre a obra, e (c) ao se obrigar a participar da obra coletiva, o autor deverá ter especificadas as condições de sua contratação.

Os itens acima mostram a variedade de discussões sobre as obras coletivas, assunto que comporta mais de uma coluna. Ainda no âmbito das noções mínimas, trago um exemplo primoroso de obra coletiva, que conheci na adolescência e que até hoje me impressiona: o livro O mistério dos MMM.

Trata-se de romance policial escrito em 1964 por Rachel de Queiroz, Antônio Callado, Dinah S. de Queiroz, Orígenes Lessa, Viriato Corrêa, José Condé, Jorge Amado, Lucio Cardoso, Guimarães Rosa e Herberto Sales, cada um autor de um capítulo sucessivo. Obra coletiva perfeita, mas juridicamente problemática, pois se se retirar o capítulo (participação individual) de um dos autores, a obra ficará mutilada e incompreensível. Desafio para a editora.

Voltando ao ponto inicial, vê-se, então, que se o financiamento coletivo é facilmente identificável pela quantia doada ou investida, os direitos de participação de autor em obra coletiva nem sempre são facilmente exercidos. A tendência é de se atribuir ao organizador esses direitos, o que reforça o papel do produtor de empreendimentos culturais, como coleções literárias, seriados de televisão, musicais, que exigem grandes valores para a sua execução. Ou seja, é possível que o crowd funding financie a obra coletiva. Por ora ficamos com essa reflexão, mas no próximo artigo continuo. Ah! O coletivo de camelos é cáfila!

Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO. Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida aborda os reflexos jurídicos das novas formas e hábitos de transmissão de informações e de conhecimento. De forma coloquial, pretende esclarecer o mercado editorial acerca dos direitos que o afetam e expor a repercussão decorrente das sucessivas e relevantes inovações tecnológicas e de comportamento. Seu e-mail é gmapublish@gmail.com.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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