“Evoé!”, exclamação dita com maior frequência no Carnaval carioca dos anos 50/60, na verdade era uma “acclamazione di giubilo que si faceva anticamente in onore di Baco” (Dizionario Etimologico on-line). Filho de Júpiter, Deus das vinhas, o nome latino Baco corresponde ao Deus grego Dionísio, e é associado aos prazeres da vida – tanto que o Bacanal, sinônimo hoje de orgia, mereceu descrição mais refinada no dicionário latino Gaffiot; “lieu de réunion des femmes qui célèbrent les mystéres de Bacchus”.
Mas outras circunstâncias relativas a Baco apontam para sua ligação com... os primórdios de Portugal. Segundo Camões ele foi o pai, ou companheiro, de Luso ou Lysa, como se vê nos Lusíadas (III, 21, e VIII, 2), que moravam em terras cuja denominação derivou de seu nome, daí Lusitânia:
“Esta foi Lusitânia dirivada
De Luso ou Lysa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece ou companheiros,
E nela então os íncolas primeiros”
...
“Este que vês, é Luso, donde a Fama
O nosso reino Lusitânia chama.”
Para o monumento Os Lusíadas, concluído em 1569, após 12 anos de trabalho, e publicado pela primeira vez em 1572, faltam adjetivos e sobram ótimos estudos, assim como para toda a obra de Luís de Camões. Registre-se, por oportuno, que a primeira edição de uma obra é chamada “edição princeps”, isto é, a original e comumente referida quando se deseja uma reedição. No caso das obras financiadas pelo Governo para distribuição gratuita, geralmente os editais públicos se referem à edição princeps, a primeira de todas.
Tendo Camões falecido em 1580, a lei brasileira de direito autoral (Lei 9.610/98) enquadra Os Lusíadas na categoria de obra em domínio público, já que: “Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil”.
Assim, qualquer pessoa pode publicar, isto é, tornar pública – e não apenas imprimir – a obra Os Lusíadas. Por esse critério, os herdeiros de todos os autores que tenham falecido até 31 de dezembro de 1940 já não mais possuem direitos patrimoniais sobre a obra de seu antecessor, que pode ser publicada livremente. Permanecem, no entanto, os direitos morais, que não se esgotam no tempo e devem ser respeitados, mantendo-se a integridade da obra e mencionando-se sempre o nome do autor original. O desrespeito a esses quesitos pode causar a proibição do uso da obra, pois é do interesse público a sua correta divulgação. É claro que adaptações, comentários e traduções são permitidos, desde que tal circunstância conste da nova versão da obra, de modo a esclarecer o público sobre a autoria original da mesma e sobre a publicação derivada.
No âmbito internacional, a Convenção de Berna, à qual o Brasil aderiu, assinando seu texto, explicita que o prazo mínimo para a queda de uma obra em domínio público é de 50 anos: “Art. 7, 1. The term of protection granted by this Convention shall be the life of the author and fifty years after his death”. Há variações de contagem do tempo para filmes e obras fotográficas, mas o que nos interessa aqui é a obra literária.
A lei de direito autoral brasileira ainda estipula que: “Art. 14. É titular de direitos de autor quem adapta, traduz, arranja ou orquestra obra caída no domínio público, não podendo opor-se a outra adaptação, arranjo, orquestração ou tradução, salvo se for cópia da sua.”
Logo, uma obra em domínio público pode comportar várias adaptações (peças teatrais), arranjos (músicas) e traduções (principalmente obras literárias), todas protegidas pelo direito autoral. Millôr Fernandes traduziu The playboy of the Western world,de John Millington Synge, falecido em 1909, tendo o texto por ele criado sido utilizado, sem sua autorização, na versão televisiva da peça. O excepcional artista recorreu à Justiça e obteve indenização pelo uso não autorizado de tradução de obra literária situada em domínio público. O argumento da emissora foi o da coincidência de traduções, mas a tese foi rejeitada, após perícia ter comprovado ser impossível duas pessoas traduzirem um texto de modo totalmente idêntico. Outros casos de adaptação de obras em domínio público são muito comuns nas coreografias, sendo freqüentes as recriações do balé Quebra-Nozes e a instigante versão de Maurice Bejart sobre a música Bolero, de Ravel.
Matéria controvertida diz respeito a diferentes prazos de queda em domínio público em países diversos, mas esse elemento complicador fica para outro artigo.
Espero que o Carnaval tenha sido bom para todos!
Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO. Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida aborda os reflexos jurídicos das novas formas e hábitos de transmissão de informações e de conhecimento. De forma coloquial, pretende esclarecer o mercado editorial acerca dos direitos que o afetam e expor a repercussão decorrente das sucessivas e relevantes inovações tecnológicas e de comportamento. Seu e-mail é gmapublish@gmail.com.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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