Como situar juridicamente, hoje, o inventário e a divisão dos direitos sobre obras artísticas, literárias e científicas situadas no mundo virtual, deixadas por pessoa falecida? Os herdeiros poderão explorar a conta de mensagens eletrônicas do seu antecessor? Como o provedor de internet saberá da morte de um cliente? A quem ele deverá entregar as mensagens? Como se fará a entrega? Essas são as principais indagações que geraram o presente artigo.
Pela morte transmite-se aos herdeiros o patrimônio da pessoa falecida; a herança, que abrange todos os direitos e obrigações do antecessor. O conceito de herança esteve historicamente vinculado aos bens palpáveis, materiais (móveis e imóveis) e direitos sobre eles. Até um passado recente, somente os artistas deixavam herança preponderantemente imaterial, como obras literárias e musicais (não confundir os manuscritos, meros suportes materiais, ainda que de valor, com a obra do intelecto em si, essencialmente abstrata). Com o advento da internet, vem crescendo exponencialmente a participação de bens imateriais no patrimônio do cidadão comum, como os blogs, os emails, os sites, todos contendo informações variadas, de conversas triviais a obras literárias de relevo, passando por senhas de bancos e segredos pessoais, dentre vários outros. Toda essa massa de informações fica armazenada aos “gigabites” em sociedades prestadoras de serviços de comunicação, que em última análise transmitem e guardam os mais diversos dados.
Surge a primeira questão. É possível que uma pessoa determine, em seu testamento, que todas as informações armazenadas virtualmente em seu nome sejam destruídas após a sua morte? Ou que sejam tornadas públicas somente após determinado período de tempo? Tal é perfeitamente possível, e deve ser respeitada a vontade do falecido, cabendo ao Juiz do caso mandar cumprir o último desejo da pessoa. Essa uma primeira situação.
Do contrário, falecendo uma pessoa que não tenha feito restrição sobre seu patrimônio de mensagens eletrônicas, pode o inventariante, isto é, o responsável pelo inventário e partilha dos bens deixados, pedir ao Juiz que determine aos provedores de serviços de internet o envio dos dados do falecido? A resposta também é afirmativa. Mas como tal se dará? O falecido pode ter várias contas de email, com endereços eletrônicos nem sempre coincidentes com o nome de nascimento, e geralmente com senhas ignoradas. Como identificá-los? Como distinguir dos homônimos? Tudo indica que o ponto de partida será a conta de email da pessoa, que sempre tem um endereço eletrônico de referência. Certificada a titularidade – e já começa a tomar vulto o hábito do uso da chave digital – não há como o provedor se negar a fornecer as informações.
Ultrapassada essa etapa, e localizadas as contas onde se armazenam os dados e os sites em nome daquela pessoa, pode o inventariante examinar os dados disponíveis? E mais. Ele ficará responsável pela manutenção desses dados, como pagamento de hospedagem, adoção de medidas judiciais contra quem queira usar indevidamente o nome, alterar ou subtrair dados de forma ilegal? Aplica-se a regra vigente, segundo a qual o inventariante deve relacionar os bens deixados pelo falecido e zelar por eles até que os herdeiros os recebam de forma individuada e definitiva. Portanto, o trabalho de relacionar os bens, na forma em que encontrados, e classificá-los segundo critérios aptos a permitir identificação e valoração do conteúdo caberá ao inventariante, que poderá se servir do auxílio de terceiros com conhecimento técnico, caso necessário.
Cumprida essa tarefa, os herdeiros podem tirar proveito das obras, da forma que lhes convier, no âmbito permitido pela lei, que no fator tempo permite a sua exploração por 70 anos após a morte do autor. Assim, a lei de direito autoral brasileira conceitua obra póstuma como “a que se publique após a morte do autor” e também faz referência a publicação de cartas. Será possível a publicação de e-mails póstumos, ou da correspondência eletrônica entre dois escritores na forma de livro? Ou poderia ser disponibilizado publicamente o acesso a essa correspondência? Em princípio, não tendo havido oposição dos falecidos, em vida, a resposta também é “sim”. Apenas será necessário verificar a autenticidade das mensagens, que no papel comportam análise grafotécnica, e no meio virtual não permitem fisicamente esse recurso. No entanto, é necessário atentar para o fenômeno comuníssimo, detectado, entre tantos outros, por Luis Fernando Veríssimo, da atribuição a um terceiro famoso de texto escrito por anônimo, para que, diante do sucesso da obra, venha o escritor renomado repudiar a autoria e se descubra o verdadeiro autor, que usufruirá de alguma notoriedade.
Outra questão prática consiste na declaração de renda do falecido, que possa estar num arquivo de computador. Imagine-se a hipótese da Receita Federal cobrar valor abusivo, ou mesmo existir alguma imperfeição que exija a declaração retificadora. Caberá ao Juiz do caso, possivelmente, ordenar que se obtenha a senha do computador do falecido para localizar a cópia de segurança geralmente gravada no aparelho. Voltamos às informações possivelmente encontradas num site pelo inventariante. Vejamos pelo ângulo da tributação, que é inerente a toda a herança. O desafio será a avaliação dos bens imateriais para fins de cobrança de imposto, que já existe nas obras literárias e artísticas materiais. Sobre que base de cálculo incidirá o percentual de 4% do imposto de transmissão causa mortis, previsto na legislação fluminense?
Extrapolando o terreno das informações, cabe um último vislumbre sobre outras questões, como, por exemplo, o próprio testamento virtual (já em cogitação legislativa) e os efeitos das declarações virtuais, entre elas a de reconhecimento de um filho havido fora do casamento, como prova para uma ação de investigação de paternidade.
Essas são, num primeiro exame, as questões básicas, de ordem prática, que um Juiz pode encontrar no inventário de bens imateriais deixados por uma pessoa, sem afastar outros aspectos, tais como violação de intimidade, tributação de bens, e forma de testamentos.
As indagações aqui formuladas servem para que o Legislador, o Judiciário, os advogados, os artistas em geral, os escritores e principalmente os cidadãos comuns, pensem no destino que pretendem dar ao oceano de informações geradas e acumuladas em uma estante virtual, quando deixarmos de ter existência física, e nos limitarmos, no mundo cibernético, a um endereço eletrônico órfão.
Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO. Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida aborda os reflexos jurídicos das novas formas e hábitos de transmissão de informações e de conhecimento. De forma coloquial, pretende esclarecer o mercado editorial acerca dos direitos que o afetam e expor a repercussão decorrente das sucessivas e relevantes inovações tecnológicas e de comportamento. Seu e-mail é gmapublish@gmail.com.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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