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Monteiro Lobato e a leitura compartilhada
PublishNews, 23/04/2010
Histórias de livros que ganham novas vidas, quatro séculos depois, já seriam notáveis. Neste caso, igualmente admirável é o projeto literário de Lobato de fazer o diário dialogar com as crianças e os

Dona Benta sentou-se na sua velha cadeirinha de pernas serradas e principiou:

Hans Staden era um moço natural de Homberg, pequena cidade do Estado de Hesse, na Alemanha.

De S? – exclamou Pedrinho, dando uma risada. Que engraçado!

Não atrapalhe – disse Narizinho. Assim como em S. Paulo há a freguesia de Nossa Senhora do Ó, bem pode haver o Estado de S na Alemanha. Em que o O é melhor do que o S?

Com este delicioso diálogo, Monteiro Lobato começa seu livro Aventuras de Hans Staden. A maneira como ele dá nova vida editorial à trajetória desse aventureiro alemão – que naufragou na costa brasileira em 1549 e foi aprisionado pelos índios Tupinambá por oito meses – e a aproxima do leitor jovem brasileiro é de uma engenhosidade literária única.

Staden escreveu um diário que correu a Europa a partir de 1557 e se tornou um dos mais antigos registros testemunhais de um europeu na terra recém achada pelos portugueses. Lobato publicou o diário de Staden em 1925 (texto original traduzido) com o título de Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil. Foi o livro fundador da Companhia Editora Nacional, do próprio Lobato, e teve mais duas edições e oito mil exemplares no total. Com o sucesso, Lobato lançou em 1927 uma adaptação, Aventuras de Hans Staden, com tiragem inicial de seis mil exemplares.

Histórias de livros que ganham novas vidas, quatro séculos depois, já seriam notáveis. Neste caso, igualmente admirável é o projeto literário de Lobato de fazer o diário dialogar com as crianças e os jovens. Mas se na aparência poderia ser apenas a “adaptação” de uma boa história, a proposta logo se revela muito mais sofisticada, como tudo o que se refere ao escritor.

Um dos aspectos mais interessantes – na “tradução” da prosa antropológica do diário para a literatura juvenil – é a narrativa com três vozes (a do diário de Staden, a de Lobato e a de Dona Benta) e a proposta de leitura compartilhada que o autor cria a partir do texto do diário, que Dona Benta conta aos netos Pedrinho e Narizinho. “A imagem do contador de histórias é frequente na obra infantil lobatiana. Em diversos livros, a leitura oral é representada como ritual no centro das atividades vividas pelos personagens do sítio”, escreve Lucila Bassan Zorzato em seu ensaio “Hans Staden à lobatiana”, no livro Monteiro Lobato, livro a livro: Obra infantil, organizado por Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini (Editora Unesp/Imprensa Oficial, 2008).

Os netos participam: “Leia a sua moda vovó!”, pede Narizinho. A prosa de Lobato utiliza ainda outras estratégias para cativar os leitores – além da participação dos ouvintes, que, inclusive, ironizam e criticam o narrador –, como o tom de aventura, capítulos curtos que permitem ler aos poucos, a linguagem coloquial (não o “português de defunto”, nas palavras de Lobato...) e a oralidade dos diálogos.

O Hans Staden de Monteiro Lobato (também interessante sobre suas concepções de história e ciência) é testemunho do instigante projeto literário do autor, sua proposta “pedagógica” e sua sensibilidade em criar uma literatura de leitura compartilhada com várias vozes dentro e fora do livro.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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(1912 - 2001)
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