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Em Salvador, o Gabinete Português de Leitura e a literatura de cordel
PublishNews, 27/01/2012
O Gabinete de Leitura e o cordel

Em visita a Salvador, capital da Bahia, fiquei imaginando o que seria um passeio que envolvesse livros, bibliotecas ou livrarias e resolvi que deixaria por conta do acaso, ao longo de quatro dias, algum encontro com esses temas, cujas impressões – de turista – seguem nesta coluna. Antes de viajar, eu havia lido Uma história da cidade da Bahia, de Antonio Risério (Versal Editores), como uma espécie de guia para aventurar-me pela história e cultura da cidade que foi a primeira capital do país. Salvador é daqueles lugares cuja história se pode conhecer aos poucos, aprofundando as camadas e os séculos.

Inscrições em alguns edifícios públicos e igrejas com relatos das “invasões” e breve ocupação holandesa no século 17 me fizeram inicialmente pensar nos sermões do Padre Vieira, a partir da leitura de Antônio Vieira: Jesuíta do rei, de Ronaldo Vainfas (Companhia das Letras), mas, caminhando na direção da Praça Castro Alves e do centro histórico (onde está o Pelourinho), me deparei com o imponente prédio de 1918 do Gabinete Português de Leitura, na Praça da Piedade, em estilo manuelino. O Gabinete conserva a exuberante biblioteca com suas estantes de madeira ornamentadas e em espetacular formato circular, contendo cerca de 36 mil volumes e a mesma áurea de “biblioteca” oitocentista que remete aos tempos em que era uma sociedade e instituição cultural e literária portuguesa central na cidade.

Fundada em 1863 e passando por várias sedes, segundo o texto do site, a biblioteca tinha por finalidade adquirir o “maior número de obras de reconhecida utilidade escritas nos idiomas português e francês e mais aquelas que posteriormente se julgarem mais precisas, assim como os principais jornais publicados em Portugal e no Brasil”. Seriam admitidos como sócios os indivíduos que gozassem “foros de cidadão português ou tivessem nascido no Reino de Portugal ou seus domínios, e que fossem de bons costumes”. Em 1874, a instituição tinha 504 sócios e ser português-baiano de “bons costumes” na época implicava/incluía, portanto, ser membro de uma sociedade literária que tinha uma espetacular biblioteca como centro da vida social e cultural.

Descendo o Elevador Lacerda (eu recomendo descer pelo menos uma vez o Plano Inclinado do Pilar que sai do Bairro de Santo Antônio – continuação da Ladeira do Pelourinho – e visitar o Forte Santo Antônio Além do Carmo, cuja vista da cidade é imperdível), em frente ao superturístico Mercado Modelo, a “Banca dos Trovadores da Literatura de Cordel” oferece dezenas de folhetos de cordel e CDs de música, incluindo violeiros e repentistas. Na manhã em que fui até lá, Paraíba da Viola, músico e membro da Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel, contava a história do cordel aos que se interessassem. Ele apresentava a trajetória dos fundadores Silvino Pirauá de Lima e Leandro Gomes de Barros – que criou uma rede de revendedores de cordel em feiras no Nordeste –, e vários outros poetas, geração a geração, e suas respectivas casas impressoras e pontos de distribuição no Nordeste.

Dos folhetos que comprei, todos eram impressos em duas casas: editora Queima-Bucha, de Mossoró, Rio Grande do Norte, e Tupynanquim, de Fortaleza, Ceará. Entre os vários que Paraíba da Viola indicou, o que mais gostei foi O cachorro dos mortos, de Leandro Gomes de Barros, mas folhetos como Os martírios de Genoveva exibem sua maestria com a narrativa em versos.

Surgido no fim do século 19, o cordel é uma síntese – popular, oral, ibérica, nordestina, medieval – de informação, literatura e entretenimento, com suas histórias de cavalaria, de reis e rainhas, de amor, de fábulas morais, de aventuras e traquinagens, sempre capaz de acompanhar os fatos sociais e políticos do momento. Há poucos dias, o PublishNews informou que a Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, que tem um precioso acervo com mais de nove mil folhetos de cordel (ou Literatura Popular em Versos), oferece nada menos do que 2.340 obras digitalmente. O site é muito bem organizado e simpático em sua informação e formas de acesso, inclusive com amplo apoio bibliográfico e entrada que permite a pesquisa por temas.

Esta coluna é uma pequena incursão turística no século 19 e em duas instituições brasileiras ligadas ao mundo dos livros e da leitura que, de alguma forma, marcam sua presença na capital baiana nos dias de hoje: o Gabinete Português de Leitura (que existe também no Rio de Janeiro e no Recife), onde homens portugueses de “bons costumes” se reuniam em torno de uma respeitável biblioteca e cultivavam o conhecimento e outros negócios e imaginários imperiais, entre Salvador e Lisboa; e o cordel, uma tradição europeia, portuguesa e nordestina, que ganhou a forma dos folhetos no fim do século 19 e era vendido em feiras e outros locais populares, levando informação, literatura e divertimento ao povo leitor.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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