Empoderamento feminino na ficção policial
PublishNews, Luciana de Gnone*, 08/03/2024
Autora Luciana de Gnone fala sobre os estereótipos relacionados à ficção policial e sobre a luta por igualdade e representatividade em todas as formas de expressão

Quando ainda rascunhava o livro Súplica em olhos mortos, o meu primeiro romance policial, lembro-me de estar em uma festa na casa de uma amiga. Após iniciar um papo com um sujeito a quem fui apresentada naquela noite, surgiu a pergunta: "Você trabalha com o quê?" Orgulhosa, respondi que estava escrevendo um romance policial. "Policial?", ele questionou com grande interesse, mas também detectei um resquício de desconfiança em sua voz. A reação desse homem, há mais de dez anos, não difere da que encontro nos dias atuais, levando-me a perguntar o motivo de tal espanto.

Um dos estereótipos mais persistentes e limitadores na sociedade, e também na literatura, é o lastimável "sexo frágil". Historicamente, nós, mulheres, fomos retratadas como seres delicados, emocionalmente instáveis, talvez razão pela qual ficamos estigmatizadas a escrever apenas dramas e romances, pois suspense, tiros e pancadaria 'não combinam' conosco. Esse mesmo sentimento transcende às obras ficcionais, afinal não seria a ficção um reflexo dos pensamentos e comportamentos humanos?

© Pexels
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Historicamente, esse estereótipo manifesta-se na tendência de optar por personagens femininas em papéis de vítimas, figuras a serem protegidas ou, no máximo, como ajudantes dos protagonistas masculinos. Isso não apenas reflete, mas também perpetua a ideia de que as mulheres não possuem capacidade para resolver crimes, liderar investigações ou enfrentar adversários perigosos. O gênero policial foi sempre dominado por protagonistas masculinos, especialmente nas primeiras décadas do século XX. Personagens como Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle; Hercule Poirot, de Agatha Christie e Sam Spade, de Dashiell Hammett são exemplos dessa tendência. Contudo, Agatha Christie ousou ao criar Miss Marple na década de 1930, uma das primeiras detetives femininas a ganhar destaque na literatura policial.

Desde os anos 1970, houve um aumento na presença de protagonistas femininas na ficção policial, refletindo as mudanças sociais e culturais voltadas à igualdade de gênero. Temos como exemplos P.D. James com a detetive Cordelia Gray e Sue Grafton com Kinsey Millhone e foi nas últimas décadas que observamos um equilíbrio crescente entre protagonistas masculinos e femininos na ficção policial. Uma das grandes protagonistas contemporâneas é Lisbeth Salander, da série Millennium, de Stieg Larsson. Esse crescimento é um sinal positivo de progresso em direção a uma representação mais equitativa e diversificada no gênero policial, e eu me orgulho de contribuir para esse movimento com meus seis livros publicados, todos protagonizados por Elas.

No mês em que celebramos o Dia da Mulher, honramos as personagens que desafiaram estereótipos, lutando por igualdade e representatividade em todas as formas de expressão. O protagonismo feminino na literatura policial, de Miss Marple a Lisbeth Salander, não apenas simboliza a evolução nas narrativas, mas também a reivindicação de espaço e voz.


* Autora de ficção policial com seis romances publicados, todos protagonizados por mulheres e realçando a investigação com temas que envolvem os limites entre a moral e ética, relacionamentos tóxicos e a violência contra a mulher. Radicada no Rio de Janeiro há mais de 40 anos, Luciana é brasiliense, mas não disfarça ser a capital fluminense o ambiente escolhido para ambientar as suas tramas, sem deixar de lado referências de vivências em países como Cazaquistão, Colômbia, México e Costa Rica. Mais do que contar histórias policiais, Luciana, que é membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror, gosta mesmo é de provocar e debater sobre questões importantes da sociedade. Seus livros mais recentes são Aquilo que nunca soube e Crimes em Copacabana: Caçada ao dono da Babilônia.

** O texto não reflete, necessariamente, a opinião do PublishNews.

[08/03/2024 08:00:00]