
Ahnert compreende que adaptar não é transcrever, é traduzir vibrações. Sua dramaturgia se aproxima do livro por dentro, buscando o que nele não se nomeia com facilidade e o que está em potência: a dor que não cabe na linguagem, a palavra que falha, o sentido que se desfaz no instante em que tenta se afirmar. Em vez de explicitar, ele escolhe tensionar. Em vez de ilustrar, ele expõe o vazio, esse território movediço em que Gabriel Abreu constrói a experiência do indizível.
Thalles Cabral torna essa vibração matéria. Sua atuação é feita de nuances, hesitações, silêncios, pequenos gestos que se alargam diante do público. Ele não interpreta o texto, ele o atravessa. Fui assistir a peça com toda a família e, confesso, demorei para digerir o que vi, ouvi e senti, por isso a demora em escrever sobre.
A encenação aposta no mínimo, e é justamente nesse mínimo que reside sua força. A luz rarefeita, os poucos objetos, o palco passarela com uma estrutura com água dentro, tudo isso cria um espaço de suspensão, quase um terreno liminar, onde o público entra em contato com aquilo que escapa da linearidade e das certezas. Nicolas Ahnert depura o palco, assim como Abreu depura a linguagem, e dessa dupla depuração nasce um encontro profundo entre literatura e corpo.
A peça não pretende domesticar o livro, e essa recusa é uma de suas maiores virtudes. Como no texto original, a palavra “triste” não funciona como diagnóstico, nem como limite. Ela é abertura. É campo de tensão. É convite. Em cena, ela se torna movimento, ressonância, risco.
Ao final, Triste! Triste… Triste? devolve ao público uma experiência que ecoa Gabriel Abreu sem jamais tentar imitá-lo. A peça confirma que algumas obras, quando atravessam para outro meio, não se diluem, mas se amplificam. E que o teatro, quando guiado por escuta e rigor, é capaz de fazer a palavra respirar de um modo novo.
Há uma força particular nesse encontro entre literatura e palco. Talvez seja justamente aí que a peça se torna tão necessária: ao lembrar que a tristeza, assim como a linguagem, se move, se deforma, se abre, nunca se fecha completamente. E que a arte, quando assume esse movimento, encontra sua potência mais verdadeira.
Indicação:
Peça: Triste! Triste… Triste?
Local: Teatro Do Núcleo Experimental (R. Barra Funda, 637, Barra Funda – São Paulo / SP)
Última semana em cartaz
Dias: sábado e domingo, 29 e 30 de novembro
Ingressos: R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia)
Link para ingressos: https://www.sympla.com.br/even...
Vanessa Passos é escritora, roteirista, professora de escrita criativa, doutora em Literatura (UFC) e pós-doutora em Escrita Criativa (PUCRS), sob orientação de Luiz Antonio de Assis Brasil. É idealizadora do Programa 321escreva, do Método Mais Vendidos e do Encontro Nacional de Escritoras. Lidera uma comunidade de escritoras que tem voz em mais de 9 países, orientando centenas de escritoras a escrever, publicar e divulgar seus livros. Autora do volume de contos A mulher mais amada do mundo (2020). Seu romance de estreia A filha primitiva foi vencedor do Prêmio Kindle de Literatura (2021), do Prêmio Jacarandá (2022), do Prêmio Mozart Pereira Soares de Literatura (2023) e vai ser adaptado para o cinema pela Modo Operante Produções, agora publicado pela José Olympio. É colunista do Jornal O POVO e do PublishNews. Nas redes sociais, a escritora pode ser encontrada no perfil: @vanessapassos.voz.
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