
Trinta anos atrás nascia a Estação das Letras, uma escola de literatura que abarrotava de conversas e alegria uma salinha no Largo do Machado, Rio de Janeiro. Era um oásis para quem gosta de ler, escrever e estar perto dos assuntos em torno dos livros. A proposta original ainda perdura: Oferecer cursos de formação literária com grandes nomes a preços possíveis. Além dos cursos, criava oportunidade para que leitores se encontrassem entre si e com autores em oficinas sortidas e eventos informais. Cerca de 33 mil alunos foram formados em seus mais de 2,5 mil cursos de escrita. A Estação das Letras inaugurou um jeito de se viver a literatura na cidade, com curadoria da poeta e idealizadora Suzana Vargas, que continua à frente da iniciativa, agora também online.
Nesta entrevista, Suzana conta que desenhou a escola “movida pela necessidade que percebia de atuar muito mais em relação à qualidade daquilo que via publicado na época” e que “queria que as oficinas pudessem orientar de vários modos os escritores de primeira viagem”. Não só conseguiu, como tem a oportunidade de vibrar com cada ex-aluno que desponta na cena, como Otávio Júnior, que ganhou o Prêmio Jabuti com o infantil Da minha janela (Companhia das Letrinhas), em 2020; Karine Asht, vencedora do Jabuti de 2023 com o romance Dentro do nosso silêncio (Paralela); Lila Maia, ganhadora do Prêmio Paraná de Literatura em 2012 pela obra As maçãs de antes, semifinalista do Prêmio Portugal Telecom; e Carlos Eduardo Pereira ficou entre os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Prêmio Oceano com o livro Enquanto os dentes (Todavia, 2017).
Suzana vai celebrar o marco de 30 anos nesta sexta (24), entre amigos e com muita conversa na Fundação Casa de Ruy Barbosa, em Botafogo. O PublishNews noticiou a festa no início da semana. Gaúcha radicada no Rio de Janeiro há décadas, Suzana conversou com a repórter Monica Ramalho, que foi uma das primeiras estagiárias da Estação e fez muitos de seus cursos ao longo de todo esse tempo. Antes de mergulhar nas perguntas e respostas, uma provocação: Quais seriam as grandes questões do mercado de livros de hoje? “Uma proliferação imensa de publicações (tanto nas editoras comerciais como nas alternativas) e pouco público para absorver essa produção, poucas livrarias para expor e vender seus livros", acredita a poeta. Leia a entrevista:
PUBLISHNEWS – Em 1995, quando você criou a Estação das Letras, o país vivia outro cenário cultural, político e até mesmo tecnológico. Três décadas depois, o que você identifica que permanece igual no impulso de quem deseja escrever — e o que mudou radicalmente?
SUZANA VARGAS – O impulso de quem lê e deseja escrever creio que continua o mesmo. Falo aqui como autora e também como criadora da Estação das Letras, num tempo em que éramos vistos com desconfiança até por escritores que depois começaram a mudar de opinião sobre o assunto. Esse impulso acho até que cresceu, floresceu nos aspirantes a escritor devido, justamente, às facilidades de escrita e divulgação da internet. Inúmeras páginas e blogs surgiram, a imprensa alternativa colaborou, as mídias sociais de toda ordem estimularam a escrita e democratizaram a auto-divulgação. Creio que a autoficção como gênero já estabelecido surgiu na esteira de toda essa revolução. Na metade dos anos 90, os autores, em geral, ainda viviam à espera de que algumas das poucas editoras mais comerciais dessem a eles um aval de qualidade, publicando-os. Hoje, não mais. Na verdade, esse movimento de autopublicação remonta aos anos 70, mas, naquela época, ainda havia um sentimento de que a legitimação de um autor deveria partir de uma editora comercial ou oficial. A diferença para os dias de hoje é que os criadores de conteúdo ou escritores estão mais livres, menos dependentes desse tipo de aval. Quais seriam as grandes questões hoje? Uma proliferação imensa de publicações (tanto nas editoras comerciais como nas alternativas) e pouco público para absorver essa produção, poucas livrarias para expor e vender seus livros. Esta proliferação responde a questões mercadológicas (os livros envelhecem rapidamente assim que lançados e existe hoje quase uma exigência de novidades) e também a estímulos diversos de produção. Os prêmios literários, as feiras e festas literárias - que, no final do século passado, existiam em menor quantidade - agora fazem parte dessa cadeia e renovam a cada ano o mercado de livros, descobrindo novos nomes de norte a sul do país.

SV – Realmente, criei a Estação movida pela necessidade que percebia de atuar muito mais em relação à qualidade daquilo que via publicado na época. Livros eram editados em gráficas, sem o menor cuidado estético, inclusive. Queria que as oficinas – uma vez ministradas por grandes mestres, escritores com experiência – pudessem orientar de vários modos os escritores de primeira viagem. E trouxe para essa docência, ainda em seus inícios, nomes como Victor Giudice, Sérgio Sant’Anna, Flávio Moreira da Costa, depois Ruy Castro e tantos grandes autores que emprestaram e emprestam até hoje seu talento na tarefa generosa de ensinar este ofício. A orientação aos professores se resumia (e ainda é) a de colocar os aspirantes a escritores para ler, exercitar o senso crítico em relação ao que escrevem para terem uma percepção mais técnica e mais crítica de seu trabalho. Muitos talentos nascem e morrem prematuramente por falta dessa orientação. Queria que a Estação atuasse, informando, inclusive em relação ao mercado editorial, a direitos autorais e a uma postura mais profissional por parte desse público. Isso exigia uma espécie de formação. Em geral, as pessoas que procuram as oficinas ou estão começando, ou desejam algum tipo de orientação ou aval para aquilo que já desenvolvem. Não raro somos procurados por escritores já com livros publicados.
Na Estação, nos preocupamos com essas questões éticas e estéticas desde sempre e isso, na verdade, mudou pouco ou quase nada. Nas nossas oficinas, os professores (todos escritores experientes) procuram desenvolver as potencialidades de cada um sem interferir naquilo que consideram o fundamental: a marca pessoal, o estilo próprio. Mas todos têm compromisso com a sinceridade, ou seja: não iludir ninguém. Literatura é trabalho, leitura, disciplina. Publicar já é outra instância, seja de que modo for, as facilidades não atingem quem deseja realizar um trabalho consistente. Publica quem quer, onde desejar. Desse ponto de vista, para nós, as questões materiais e virtuais mudam ou acrescentam muito, muito pouco. No início eu programava cursos e oficinas diversos atuando no campo da leitura e da escrita, depois acrescentei disciplinas para que os neoescritores e profissionais do livro compreendessem que o livro é também um negócio, não vem voando parar nas nossas mãos e exige um olhar menos romântico dos que desejam se lançar como autores. Por perceber essa necessidade criei, há alguns anos, a Formação Literária para Escritores e a Formação Literária para Mediadores de Leitura. Elas duas contém, em um breve espaço de tempo, informações e práticas indispensáveis para todo aquele que deseja se iniciar no universo do livro, da leitura, da literatura. As duas Formações, de natureza diversa, dão a quem quer enfrentar as alegrias e agruras de ser escritor, uma noção mínima desse vasto universo.
PN – Ao expandir as atividades para o ambiente digital, a Estação passou a ser acessível para qualquer parte do globo terrestre. O que mudou, na prática? Tem muita gente querendo aprender a fazer literatura por aí? Você tem algum ex-aluno ou ex-aluna que esteja brilhando na cena literária - e que te dá aquele orgulho de ter acompanhado desde o início?
SV - Como disse lá atrás, do ponto de vista das intenções e conteúdo, caminhos éticos ou estéticos nossos objetivos não mudaram em quase nada. Continuamos perseguindo a qualidade, num terreno em que muitas vezes é difícil driblar a vaidade de cada aspirante a escritor sem escorregar para o elogio fácil. Infelizmente, depois de 25 anos de atividade presencial ininterrupta, tivemos de migrar para o ambiente digital que é muito diferente. Foi duro nos desfazermos de uma livraria somente de literatura (utópica, mas é assim que funcionamos), de um espaço modesto, mas construído com e pelos alunos nas mínimas coisas: objetos, fotos, aquele ar de casinha de livros que tínhamos dentro de uma galeria, uma toca onde Gullar , Cleonice Berardinelli e tantos amigos escritores estiveram para dar aulas algumas vezes. Mas eu não queria deixar morrer essa ideia e continuei acreditando que também no espaço virtual teríamos a chance de nos reinventar conservando os mesmos objetivos. E, de fato, conseguimos! Continuamos não aceitando mais do que dez ou quinze alunos nas oficinas. Seguimos com quatro eventos mensais onde os alunos se encontram e, mesmo virtualmente, se comunicam. Também continuamos a oferecer bolsas de 50 a 100% de gratuidade para professores e alunos de Letras.
O que mudou com a internet é que expandimos nossos domínios e temos alunos do Brasil todo e do mundo também. Acho que a Estação das Letras contribuiu e contribui, de fato, para formar uma legião de leitores que eu encontro na Flip, nas Bienais, dentro das livrarias, nos eventos literários. E para inspirar e despertar novos talentos literários que já ganharam prêmios Brasil afora. Podemos citar alguns alunos que ganharam prêmios importantes: Lila Maia é uma poeta que vi nascer nas nossas oficinas e hoje se projeta como um dos grandes nomes da poesia contemporânea (Prêmio Paraná de Literatura, entre outros); Marta Barcellos (Prêmios Sesc e Biblioteca Nacional de ficção); Carlos Eduardo Pereira (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalistas do Oceanos); Karine Asht (Prêmio Jabuti) e muitos outros. Agora em 2025, a Márcia Moura acaba de ganhar o Prêmio Pallas de romance. Um dos nossos orgulhos que adquiriu fama nacional e internacional, vencedor do Jabuti, traduzido em vários idiomas é o Otávio Júnior, que começou a escrever nas nossas oficinas e por dez anos foi nosso bolsista permanente até decolar como um dos grandes nomes da literatura infantil nacional. São muitos, a cada ano, muitas alegrias. E muitas pessoas querem e vão continuar a querer escrever. Sabem que a criação é a única arma contra a mesmice, a depressão e inclusive contra os inúmeros e concretos fantasmas da IA.






