A começar pelo fato de que há apenas dois anos nós tínhamos cidadãos brasileiros fazendo fila para comprar ossos nos mercados e açougues do país, tendo lamentavelmente retornado ao Mapa da Fome, do qual havíamos saído em 2014. Em 2022, havia 18 milhões de brasileiros em situação de extrema pobreza. Podemos até argumentar que esse recorte da população já não estaria nos indicadores de compradores de livros em 2019, mas impossível ignorar que muitas crianças brasileiras em idade escolar deixaram de ter acesso à livros escolares, seja pelas restrições da pandemia ou principalmente pelos atrasos sucessivos nas compras dos planos governamentais – e associando isso à urgência de lutar pela prato do dia seguinte, a leitura evidentemente perde relevância.
Olhar para a queda de 52% para 47% de leitores no Brasil na comparação de 2019 com 2024 (pag. 15 da apresentação da Pesquisa) já é bastante ruim, mas, se comparado com os 55% de leitores de 2015 – último ano da economia forte no país com funcionamento normal das instituições – temos uma dimensão mais exata do que significaram as graves interferências na democracia na sociedade brasileira de 2016 em diante, com consequente descaso nos investimentos de Educação e Cultura.
O decrescimento da população de leitores também deve levar em conta que o Censo realizado em 2022 foi extremamente criticado, não só pelas circunstâncias complexas da pandemia, mas principalmente pelo corte nos recursos financeiros necessários para que uma ferramenta tão importante pudesse ser realizada com o rigor exigido, uma decisão política completamente equivocada.
A queda nos indicadores de entrevistados que estavam estudando no momento da realização desse Retrato da Leitura (pág. 15) por si só é esclarecedor do porquê dessa queda nos índices de leitura. Mas não só isso. A queda do percentual de leitores, mesmo entre aqueles que estão estudando, faz com que esses dados sejam ainda mais assustadores (pág. 18). Nossas escolas estão indicando menos livros e/ou não têm livros para entregar para seus alunos.
Mas quando olhamos a questão de Classe e Renda assusta ainda mais o fato de que as classes mais abastadas têm uma queda muito grande nas estimativas de leitores (pág. 20). Ou seja, não é só questão econômica. Somente a Classe C tem queda mais acentuada que a Classe A. Essa queda na Classe C evidentemente é por falta de acesso, seja por falta de poder de compra ou qualquer outro motivo, mas na classe A pode indicar uma queda no status social da leitura, provocada principalmente por um período de desvalorização da Ciência e da Cultura, fartamente amplificado pelas redes sociais, o que é demonstrado pelo crescimento desproporcional da ocupação do tempo livre com Internet ou WhatsApp (pág. 55) – espaços que sabidamente foram pródigos em disseminar teorias de conspiração e notícias falsas.
As deficiências dos dados do último Censo também parecem contaminar a queda nos números das estimativas de leitores do sexo feminino, que, embora mantenham os percentuais da distribuição dos gêneros de 2019 (52% mulheres; 48% homens), apresentam uma queda de quase quatro milhões de pessoas, consequência da redução da população geral do Brasil entre os dois últimos Censos.
Analisando a porcentagem de leitores pelas regiões do Brasil, chama muito a atenção a queda de leitores no Nordeste (pág. 21), quando sabemos que, pelo ponto de vista comercial, essa é a região que mais cresceu proporcionalmente nos últimos anos. Ou seja, a queda do número de leitores tem a ver com a ausência das políticas de Estado voltadas ao Livro e a Leitura, pois são notórias as expansões dos pontos de vendas e distribuição verificados nesses estados nos últimos dois anos, tanto de lojas físicas como em Centros Logísticos de empresas de e-commerce.
O declínio do número de livros lidos por ano (pág. 32) mais uma vez demonstra a relevância da depreciação dos investimentos em Educação e Cultura verificada de 2016 até 2022, quanto até mesmo o Ministério da Cultura foi extinto. Saímos da marca de 4,96 em 2016 para 3,96 em 2024. Quando analisamos as faixas de escolaridade, nos deparamos com o despropósito de que quanto maior a escolaridade, maior é a diminuição da quantidade de livros lidos por ano. Leitura não é mais ferramenta de formação? Lembrando que esses dados contemplam qualquer formato de leitura, seja físico ou digital.
Essa discrepância reaparece na resposta da pergunta sobre locais que os entrevistados costumam ler. A sala de aula cai de 35% em 2015 para apenas 19% em 2024. Se professores não leem por falta de acesso aos livros, seja por questões econômicas ou de formação, é natural que indiquem menos livros. A indicação de professores é um dos elementos que mais impactam na influência pelo gosto da leitura, como apresentado na pág. 66, no qual a importância deste item cai de 11% para apenas 8% de 2019 para 2024. Talvez se tivessemos a comparação com os dados de 2015 essa queda seria ainda mais assustadora.
Para não alongar mais, é muito fácil depreender que com o abandono dos investimentos em Cultura e Educação não deveria ser de se estranhar que tenhamos perdido tantos leitores no Brasil. É urgente não só a retomada dos investimentos e transformação dos projetos voltados ao Livro e Leitura em políticas de Estado efetivas, de forma a impossibilitar que mudanças nos ocupantes do cargos governamentais subvertam ações fundamentais para construção de uma sociedade democrática e responsável. Também é importante que, associada a esse processo, seja desenvolvida uma valorização dos profissionais de educação. Estes, como já está demonstrado, são fundamentais na construção do hábito e gosto da leitura e ainda. Por fim, é urgente que todos os profissionais ligados ao Livro e a Leitura cobrem de maneira intransigente, não importa quem esteja no poder, que os investimentos em Educação e Cultura NUNCA sejam desviados para o que quer que seja, sob pena de comprometer o futuro do país.
*Gerson Ramos, além de "tio do PublishNews", é diretor comercial da Editora Planeta. Quando não está vendendo livros está tocando viola caipira e às vezes faz as duas coisas juntas.