'Retrato de um certo oriente' estreia nos cinemas a partir de transcriação de livro de Milton Hatoum
PublishNews, Guilherme Sobota, 22/11/2024
Filme do diretor Marcelo Gomes partiu do romance do escritor para contar uma história de amor em meio à guerra

Cena de 'Retrato de um certo oriente', já nos cinemas | © O2 Play
Cena de 'Retrato de um certo oriente', já nos cinemas | © O2 Play
A palavra que Milton Hatoum utiliza para definir a adaptação do seu livro Relato de um certo oriente (Companhia das Letras) para o cinema – o novo Retrato de um certo oriente, dirigido por Marcelo Gomes e que estreou nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (21) depois de um circuito internacional recheado desde o início do ano – é transcriação. O conceito emprestado de Haroldo de Campos aponta para o roteiro do filme, pinçado do livro para criar uma história particular e sensível de imigração e de amor em meio à guerra.

Diferente do livro – narrado por uma personagem que volta ao lar na Amazônia em busca das suas memórias e origens –, o filme conta a história de Emilie (uma brilhante Wafa'a Celine Halawi) e seu irmão Emir (Zakaria Kaakour), que embarcam para o Brasil fugindo de uma iminente guerra no Líbano no final dos anos 1940. Durante a viagem, Emilie se apaixona pelo comerciante muçulmano Omar (Charbel Kamel). Para Emir, o ciúme incontrolável vai ditar o seu destino, e as diferenças religiosas perpassam a história.

O filme é falado em árabe, francês, português e línguas indígenas – mas conta com espécies de depoimentos de personagens italianos, poloneses, palestinos e de outras origens, todos utilizando da imigração em busca de uma vida melhor no Brasil. Os terríveis acontecimentos contemporâneos no Oriente Médio atual acabam emprestando ao filme coincidentes (e talvez nem tanto) aspectos urgentes.

O filme começou a ser imaginado pelo diretor Marcelo Gomes (de Cinema, aspirinas e urubus e Estou me guardando para quando o carnaval chegar, entre outros) há mais de 10 anos, e a produção foi interrompida pela pandemia. Um fundo italiano passou a apoiar a filmagem, que se tornou co-produção ítalo-brasileira.

Retrato estreou no início do ano no Festival de Roterdã, na Holanda – e Marcelo Gomes explica que essa estreia foi uma prova de fogo. “Roterdã é uma cidade que tem uma população libanesa muito grande. E foi meio a prova de fogo. Porque entre os filmes que a gente vê, de cineastas estrangeiros que filmam o Brasil, às vezes é uma coisa meio exótica demais. Então a gente precisava trazer atores libaneses para atuarem com os personagens libaneses – foi uma decisão que custou muito dinheiro para a produção, mas foi muito importante, porque eles trazem o sotaque, o pensamento, a cultura deles. Eles trazem a forma de caminhar, a forma de ser”, explica o diretor ao PublishNews em uma entrevista em São Paulo.

“Além disso, eu pedi a eles, quando chegassem ao Brasil e à Amazônia, que registrassem os sentimentos em relação ao lugar, para imprimir os seus olhares. Aprendi muito com eles sobre a cultura libanesa, e sobre como representar essa cultura num filme. Eu tinha muita preocupação com o ‘misrepresentation’. Quando o filme passou em Roterdã, tinha muitos libaneses assistindo e foi muito bonito a reação das pessoas, que se sentiram representadas. É uma história de amor, é um romance em tempos de guerra, né? Não é um filme que retrata a questão do Oriente Médio só do ponto de vista da guerra. As pessoas têm sentimentos”.

Uma ideia, no ano passado, era que o filme abrisse o Festival de Cinema de Beirute, tradicional evento de cinema no Líbano – o que não ocorreu, por conta da guerra. “O Líbano está sendo massacrado”, explica Milton Hatoum – que não participa diretamente do filme, mas acompanhou todo o processo e agora também faz a divulgação com o diretor. “Nesse momento que nós estamos conversando, há crianças morrendo, são mais de um milhão de deslocados. Uma população de quatro milhões e meio, e um terço está sem teto, sem casa. Mas eu acho que, enfim, é um filme muito sofisticado. O Marcelo transformou a casa, essa casa libanesa em Manaus, numa viagem entre Beirute e Amazônia, e uma viagem metafórica também entre as culturas. Um dos grandes lances do filme é mostrar que as culturas não são hierárquicas, não são classificadas de acordo com a hierarquia dos colonizadores. A cultura africana, a cultura do oriente, a cultura ameríndia, elas são inferiores para o olhar imperial. Eu acho que o filme traz essa questão de um modo ao mesmo tempo profundo e sutil – que a possibilidade do diálogo intercultural existe”.

Para o diretor, dois elementos do livro foram centrais para o filme, mesmo que o enredo não seja exatamente o mesmo: as questões de alteridade e memória.

“A alteridade, o respeito ao outro, a diferença do outro, a observar o mundo do ponto de vista do outro, e a compreender melhor o outro a partir dessa perspectiva era um elemento muito curioso para mim. Isso está dentro do meu cinema, desde o meu primeiro filme. Eu ficava sempre imaginando como é que era esse encontro de culturas, esse encontro radical de alteridades, né? De libaneses e homens originários da Amazônia, por exemplo. A memória, no caso do livro, vem a partir das palavras. Eu queria que a memória no filme viesse a partir da fotografia. Ou seja, transcrever das palavras para a imagem fotográfica. O livro tem muitos fluxos de consciência. E o meu desejo era transformar esses fluxos de consciência em olhares. Em olhares silenciosos. Ou seja, eu fiz um retrato de um relato de um certo oriente. Mas sempre inspirado no livro”, explica Gomes.

A direção de fotografia do filme é de Pierre de Kerchove, e o roteiro é assinado por Marcelo Gomes, Maria Camargo e Gustavo Campos. Retrato de um Certo Oriente é uma coprodução entre Matizar Filmes, Kavac Film (Itália), Gullane, Muiraquitã Filmes, Globo Filmes, Canal Brasil e Misti Filmes, com produtores associados Bubbles Project, VideoFilmes e Orjouane Productions (Líbano). No Brasil, o filme é distribuído pela O2 Play, da O2 Filmes.

Reedições

A Companhia das Letras vem reeditando as obras de Milton Hatoum, com fotos de capas do fotógrafo paraense Luiz Braga – Relato de um certo oriente está agora na terceira edição. Os livros também têm posfácios de especialistas em literatura brasileira, como Stefania Chiarelli e Davi Arrigucci Jr.

Veja o trailer do filme:

[22/11/2024 11:17:24]