Lei Cortez: livreiros independentes explicam potencial de proteção às livrarias e à bibliodiversidade
PublishNews, Guilherme Sobota, 16/10/2024
PublishNews falou com profissionais de livrarias de diversas cidades para entender melhor o que está em jogo com a aprovação da Lei que limita descontos nos preços dos livros no primeiro ano de lançamento

Livraria da Tarde, no bairro de Pinheiros, em São Paulo | © Livraria da Tarde
Livraria da Tarde, no bairro de Pinheiros, em São Paulo | © Livraria da Tarde
Com a aprovação da Lei Cortez na Comissão de Educação do Senado em primeira votação – agora o projeto aguarda uma nova votação chamada “suplementar” para encerrar o trâmite no Senado, sem a necessidade de passar pelo Plenário, antes de seguir para a Câmara –, o PublishNews entrou em contato com livreiros independentes de algumas cidades para medir a temperatura. O potencial de proteção às livrarias físicas e a bibliodiversidade são os principais fatores que unem os entrevistados, todos favoráveis à entrada em vigor da nova legislação.

Em resumo, a Lei Cortez prevê que nos primeiros 12 meses do livro ele possa ter um desconto máximo de 10% nas lojas, medida que contribuiria para a bibliodiversidade e seria um auxílio para as livrarias na competição com players internacionais, por exemplo. Não há controle de preços, uma vez que quem define o preço do capa do livro continua a ser a editora que o lançou, mas sim do percentual de desconto no primeiro ano após o lançamento.

“Acredito que a Lei Cortez seja fundamental para a proteção da atividade livreira e vou mais longe: ela é fundamental para a produção literária nacional com a diversidade que lhe é devida, uma vez que as livrarias são a vitrine de longo alcance dessa produção”, explica o Adalberto Ribeiro, o Beto, sócio proprietário da Livraria Simples, em São Paulo.

“Os livros de grande giro, que são os lançamentos em sua maioria, garantem a manutenção de livros com menor giro. Denis Diderot cantou essa bola no século XVII. O que eu quero dizer é que a manutenção d’A república de Platão em tradução direta do grego na prateleira da minha livraria, por um ano ou mais, implica na venda do livro novo do Felipe Neto”, exemplifica. “Essa lei vai possibilitar à gente vender mais ‘livros do Felipe Neto’ e consequentemente propiciar melhores condições de trabalho para mais e melhores trabalhadores do livro”.

Borgópio D’Oliveira, livreiro e sócio da Triuno Livraria, do bairro do Irajá, no Rio de Janeiro (RJ), ressalta que o debate democrático é saudável e tem o dever de promover algumas reflexões. “De 25 de fevereiro de 2015 (data em que o projeto foi protocolado) até o dia de hoje, muitas páginas já foram viradas dentro do ecossistema do livro. Uma reflexão que poderia ser suscitada: estaríamos vislumbrando o futuro a partir da paisagem em nossos retrovisores?”, questiona.

Triuno Livraria, no bairro do Irajá, no Rio de Janeiro (RJ) | © Triuno
Triuno Livraria, no bairro do Irajá, no Rio de Janeiro (RJ) | © Triuno
Para ele, a Lei pode contribuir também como marco inicial de um movimento amplo de diálogos, a partir das diversas similaridades entre as lojas, visando a plena bibliodiversidade brasileira. ”Para uma livraria de bairro, como é o nosso caso, a Lei contribuirá reduzindo a falsa impressão no leitor de que a livraria ‘pequena’ cobra preços maiores. O que não corresponde à realidade. Com a Lei Cortez em vigor, e uma fiscalização atuante, os livros que dominarem as mídias poderão surgir com preços parecidos nos mais diversos canais de vendas”, observa.

Para José Luiz Tahan, da Livraria Realejo, em Santos (SP), a Lei vai promover um novo equilíbrio e um novo fôlego para as livrarias físicas. “Acho que vai criar, inclusive, um cenário muito mais positivo e mais possível para essas livrarias operarem. É extremamente saudável para o mercado editorial e para proteger esses lugares que são as livrarias de rua”, comenta.

“Eu acho que, após uma entrada em vigor, vai haver um tempo de ela ser entendida e desfrutada. Acho que tira uma ansiedade geral em relação a preços. Os leitores vão se concentrar mais nos conteúdos. Num segundo momento, inclusive, os livros vão baixar de preço, porque não haverá mais o ‘custo Amazon’”, diz.

O livreiro e editor João Varella, da paulistana Banca Tatuí, avalia que a Lei Cortez representa uma medida fundamental para a valorização da cadeia produtiva do livro e a democratização do acesso à leitura.

“No contexto das livrarias independentes, como a Banca Tatuí, vemos essa legislação como um instrumento que começa a promover maior equilíbrio no mercado editorial, ao garantir condições de venda mais justas. É importante assegurar que pequenas livrarias possam competir em um cenário dominado por grandes redes e marketplaces, o que fortalece a bibliodiversidade e o acesso a publicações menos convencionais, mas de enorme relevância cultural. Porém, ênfase em ‘começa’, pois acreditamos que a atual redação é tímida, os lançamentos representam um universo pequeno”.

Para ele, ao estabelecer uma limitação no desconto, a Lei Cortez não só beneficia o pequeno livreiro, mas também incentiva uma relação mais saudável entre leitores e editoras. “Isso cria um ecossistema mais sustentável, onde o valor simbólico e econômico do livro é respeitado em todas as etapas da produção e comercialização. Somos totalmente a favor de iniciativas que contribuam para o fortalecimento da economia do livro e a pluralidade de vozes no mercado. Torcemos para que muitos editores independentes que trabalham com livrarias entendam a importância de seguir o preço de capa, que isso se torne algo natural. E que mais leis e iniciativas governamentais fomentem o livro e a leitura floresçam”.

Claudia Masini e Alencar Perdigão, sócios da Quixote Livraria, em Belo Horizonte (MG), acreditam que a Lei Cortez seja a única forma de viabilizar a sobrevivência das livrarias. “Precisamos lembrar que os e-commerces que vendem livros com preços às vezes inferiores ao preço de custo praticam uma economia predatória. Eles não sobrevivem da venda de livros como nós, que trabalhamos e nos dedicamos exclusivamente aos livros. Que fazemos um trabalho que vai muito além da simples venda, com eventos culturais, clubes de leitura, encontros com escritores, bate papo. Um patrimônio cultural da cidade. É preciso esclarecer ao consumidor/leitor que as livrarias não cobram mais caro, como muitas vezes é falado. E sim, que há uma política dos grandes de vender com prejuízo com a finalidade de monopolizar o mercado livreiro e exterminar a concorrência”, analisam.

Já Monica Carvalho, da Livraria da Tarde, em São Paulo (SP), acredita que a Lei pode dar um pouco de ordem a um mercado que está navegando desordenado, situação na qual todos saem perdendo, incluindo o leitor.

"Todos sabem que uma livraria de rua, independente, luta diariamente para manter seu negócio sustentável. Ter os preços de capa dos lançamentos equilibrados em qualquer varejo nos ajudará a ter um negócio mais forte, saudável. Em média, 30% do faturamento da Livraria da Tarde vem dos lançamentos. Mas sabemos que perdemos muitas vendas para aquelas pessoas que vão esperar 15 dias, um mês para comprar um pouco mais barato online. Ontem mesmo um cliente queria comprar o novo livro da Sally Rooney e quando viu o preço falou com todas as letras... Vou esperar abaixar o preço para comprar. Então, sinto que com a lei, competiremos de forma mais sadia", explica.

O livreiro Daniel Pedrian, do Sebo Fulô, em Porto Alegre (RS), explica como a Lei pode contribuir também para as livrarias de livros usados.

“Os sebos, as livrarias de usados, a livraria do bairro, as livreiras e os livreiros independentes e as feiras literárias, que são os verdadeiros responsáveis por levar o livro a preços populares aos brasileiros que lêem pouco, esses atores se sentirão mais seguros em investir nos livros da moda, que aparecem nas listas de mais vendidos, pois com a fixação do preço pelo período de um ano, o especulador não vai poder vender os livros abaixo do preço de custo causando encalhe nos pequenos acervos e incapacidade da pequena livraria em fazer girar o capital”, resume.

“Sabemos que num país como o nosso, com altos índices de desigualdade na distribuição do valor gerado pelo trabalho, o livro não entra na lista de prioridades da maioria da população, mas é preciso conscientizar a nossa classe média, e os nossos escritores e editores, que comprar ou vender o livro mais barato e com frete grátis pode custar mais caro no futuro próximo, pois estamos ficando reféns cada vez mais das escolhas que essas plataformas fazem por nós”, analisa ainda. “Torçamos para que a lei Cortez, que evidentemente tenta proteger os grandes jogadores nacionais da rapina multinacional, ajude também as pequenas e independentes livrarias que estão nesse momento se organizando numa cooperativa nacional e desenvolvendo uma plataforma que promete, dentro de uma lógica de sustentabilidade, o melhor preço para as leitoras e leitores, autonomia e dignidade para livreiras e livreiros de cada canto do Brasil. São essas pessoas que estão verdadeiramente comprometidas com a democratização da leitura, do acesso a livro, e com a formação de cidadãos livres e críticos”.

[16/10/2024 12:21:20]