Livros em tempo de resiliência climática: por que embalamos em plástico?
PublishNews, ​Mayara Floss e Thomas Vieira*, 15/08/2024
Se cada exemplar vier embalado em shrink plástico comum, como exigem algumas distribuidoras e livrarias, isso significa que somente no ano passado o mercado editorial gerou mais de 640 toneladas de resíduo plástico no planeta

'A pervasividade do plástico em entrar em todas as esferas da vida, principalmente os de uso único como os do shrink, coloca esta como a única alternativa possível, mas este hábito foi construído pela indústria também' | © Freepik
'A pervasividade do plástico em entrar em todas as esferas da vida, principalmente os de uso único como os do shrink, coloca esta como a única alternativa possível, mas este hábito foi construído pela indústria também' | © Freepik
Em tempo de enchentes no Rio Grande do Sul e secas na região da Amazônia, vivemos momentos que exigem muita adaptação e resiliência. A marca da humanidade no planeta, em termos geológicos, é uma camada de plástico na estratigrafia da Terra, chamada de Plasticeno. De forma que devemos entender os riscos e refletir sobre embalagens de plástico.

As embalagens dos livros, conhecidas como "shrink", passam pelo processo de encolhimento com calor, por isso o termo "encolhível". Em geral são feitas de um derivado do petróleo, o polietileno ou PE de baixa densidade, e permitem que o material impresso seja acondicionado e fique em um material translúcido, protegendo-os de marcas de manuseio e facilitando o transporte.

As embalagens descartáveis estão entre os polímeros mais comumente encontrados no corpo humano, em órgãos como pulmões, placentas e corações. Ainda são fonte de produtos químicos desreguladores endócrinos, contribuindo para a infertilidade e doenças não transmissíveis, incluindo obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer. Para além da exposição ao plástico e seus resíduos, os microplásticos e nanoplásticos, a gestão de resíduos e reciclagem não acompanham o ritmo de aumento da poluição. Estes materiais estão entre os principais poluentes da biosfera, que alimentam as mudanças climáticas que causaram os desastres socioambientais que vivenciamos e também estão matando animais, rios, mares e criando ilhas de plástico no meio dos oceanos.

O debate perpassa o fato de que o plástico que embala os livros é reciclável. Contudo, a dúvida é: ele é de fato reciclado? Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), apenas 9% do plástico produzido globalmente é reciclado. No Brasil, a porcentagem de plástico reciclado é ainda menor, de 4% segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE).

Segundo a pesquisa "Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro", coordenada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), em 2023 o setor editorial brasileiro produziu 45 mil títulos e 320 milhões de exemplares, dos quais aproximadamente metade se destinam às compras governamentais. Isso nos faz crer que metade do problema pode ser resolvido através de políticas públicas diretas.

Se cada exemplar vier embalado em shrink plástico comum, como exigem algumas distribuidoras e livrarias, isso significa que somente no ano passado o mercado editorial gerou mais de 640 toneladas de resíduo plástico no planeta. Ainda que a sustentabilidade seja tema recorrente em fóruns de debate do mercado editorial, na prática poucas iniciativas se tornaram sistemáticas. Um bom exemplo de política sistemática de sustentabilidade é o papel com certificação FSC, um tipo de certificação que indica a procedência do papel produzido com manejo florestal correto no aspecto ecológico, social e econômico. O mesmo não acontece em relação aos derivados de petróleo presentes nas embalagens, como shrink e plástico bolha.

A pervasividade do plástico em entrar em todas as esferas da vida, principalmente os de uso único como os do shrink, coloca esta como a única alternativa possível, mas este hábito foi construído pela indústria também. Mentalidade essa de que os livros devam ser assépticos, lacrados em plástico e sem nenhuma marca de manuseio, cuja percepção é de que o valor do objeto é maior nestes casos mesmo que o conteúdo seja exatamente o mesmo e que estas marcas não provoquem prejuízo à leitura do texto. Certamente, a alternativa mais fácil é manter o shrink, no entanto, os desafios climáticos que estamos vivendo sugerem que busquemos outros caminhos.

Existem alternativas de eficiência semelhante para conservar o bom estado do livro: shrink de bioplástico, embalagens de papel ou fitas biodegradáveis. Em geral estas soluções são descartadas sob alegação de alto custo, mas, se adotadas em larga escala, essa barreira pode ser superada. A curto prazo as pessoas que compram livros deveriam poder escolher nos sites de venda se querem ou não o livro embalado no plástico. Quem optar por embalagem plástica poderia pagar um valor a mais a ser doado para cooperativas de catadores estimulando a economia circular, como uma forma de educação do público. A médio prazo educar os leitores e a indústria do livro que livros são de papel e que não precisam de plástico.

Em uma pesquisa realizada nas redes sociais da Editora Coragem em uma pequena amostra de cerca de 50 pessoas, 30% indicam optar pelo livro lacrado ao escolher entre um exemplar sem plástico e outro lacrado, mas 95% responderam que não se importariam de ler um livro com marcas de manuseio.

Em agosto do ano passado, a ONG Oceana Brasil lançou, juntamente com outras 60 organizações, a campanha "Pare o Tsunami de Plástico", cujo objetivo é chamar atenção do Congresso e da sociedade civil para a importância do Projeto de Lei 2524/2022 que cria um marco regulatório para o estabelecimento de uma Economia Circular do plástico no país. Editoras, distribuidoras, gráficas, livrarias e todas as empresas da cadeia produtiva livreira podem ser modelo e talvez dar este passo a frente, retomando o desastre do Rio Grande do Sul a destruição de editoras e livrarias, precisamos repensar inclusive os detalhes, como a embalagem. Desta forma também sugerimos uma chamada com a hashtag nas diversas redes sociais #LivroSEMplástico para começarmos a difundir esta discussão.

Kopenawa já há muito tempo diz: quanto mais fundo cavamos a Terra, maior o buraco no céu, o que pode ser lido como uma metáfora do aquecimento global e da urgência de pararmos de explorar a Terra. A necessidade de descobrir novos mundos possíveis, outros processos de subjetivação, sair da homogeneização da cultura. Sair do plástico. Muitos de nós trabalhamos com a motivação de melhorar o mundo através dos livros, mas que mundo será possível melhorar com o preço a ser pago pelo isolamento desse conhecimento em inúmeras camadas de proteção plástica? Não serão os livros um caminho desta mudança?


*Mayara Floss é escritora, médica de família e comunidade, doutoranda em Patologia da Universidade de São Paulo, estuda o tema da saúde planetária e mudanças climáticas. Em 2024 lançou o livro de contos 'Mundo impossível'.
Thomas Vieira é editor da Editora Coragem.
Foto: Pâmela Tisott.

**O texto não reflete, necessariamente, a opinião do PublishNews.

[15/08/2024 10:20:00]