Como surgiu a Biblioteca Indígena do Xingu
PublishNews, Daniel Massa*, 28/09/2023
Escritor e professor conta como foi construída a Biblioteca, que além do acervo prevê conjunto de ações relacionadas à leitura e literatura no território indígena

Biblioteca Indígena do Xingu | © Rafael Zacca
Biblioteca Indígena do Xingu | © Rafael Zacca
Há quase 10 anos eu conhecia o Território Indígena do Xingu. Desde então, tive a oportunidade de estar em Ipatse algumas vezes e foi em uma delas que nasceu a Biblioteca Indígena do Xingu (BIX).

Ainda na metade de 2021, Takumã Kuikuro e Mutuá Mehinako me convidaram para passar um ano como professor na Escola Estadual Indígena Central Karib, localizada na aldeia.

Eu não pude aceitar o convite. Mas também não consegui recusá-lo. Daí surgiu a ideia de criar a BIX, um conjunto de ações que, além da construção de um acervo inicial, também contou com aulas de formação continuada para os professores indígenas e oficinas de escrita criativa.

Para isso, convidei dois amigos professores, Lorena Fontes e Rafael Zacca, que me ajudaram a conceber e a executar o projeto em janeiro de 2022.

Ao todo, compramos cerca de 300 livros com o valor arrecadado numa vaquinha online. Além disso, foram mais de 90 horas de trabalho pedagógico em sala de aula. Tudo isso rendeu um material incrível que ainda está aguardando publicação. São poemas, contos, crônicas, mitos e histórias tradicionais dos kuikuro.

Nesses encontros, gostávamos também de brincar com a tradução entre o karib e o português. Entre tantos poemas, lembro de cabeça a tradução de “Amor”, de Oswald de Andrade, que mantém inclusive a preocupação com a sonoridade:

"Amor
Humor."

"Uakitingo
Tapogingo."

© Rafael Zacca
© Rafael Zacca
Dois dos alunos mais engajados nas oficinas, Sallu e Takapé, escreveram, produziram e lançaram seus livros artesanais durante as aulas. Equipamos uma pequena gráfica na escola, com mimeógrafo, diversos papéis especiais, guilhotina e grampeador-canoa. No último dia, fizemos uma tarde de autógrafos na aldeia.

Um ano e seis meses depois, volto a Ipatse. A aldeia toda se movimenta para o ritual de juntar polvilho, uma preparação para o Kuarup que acontecerá no início de agosto. No meio da confusão, sou surpreendido por Sallu, que hesita em me abraçar para não sujar minha camisa com urucum. Apresento a minha companheira e ele diz alguma coisa como “esse cara aí, professor, abriu a minha cabeça” e faz um som de explosão movimentando as mãos. Depois, pergunta: “quer um rap agora?” e começa a rimar de improviso, lançando suas flechas, um arsenal parecido com o encontrado em À margem, livreto lançado no ano passado.

Nas estantes da BIX, há uma outra ordem. Alguns livros se foram, outros chegaram. Trago alguns exemplares de Fio d’água na mochila. Um deles eu deixo nas prateleiras. Os outros vão presenteando os amigos.

Mutuá está entusiasmado com a inscrição da BIX no Prêmio Jabuti. Falo que estamos correndo atrás de apoio, novos editais. “Vamos fazer”, ele diz.

Daniel Kuikuro, meu xará, me pede ajuda para reformar a sede da AIKAX (Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu). Sua ideia é aproveitar a pequena construção de alvenaria para também acondicionar o acervo da Biblioteca, afastado da poeira e dos insetos. Conversamos muito, os Danieis, e decidimos fazer uma campanha de financiamento coletivo online. Nossa ideia é começar a divulgação ainda em agosto.

Ao todo, estive por dez dias em Ipatse, em julho de 2023. A aldeia não é a mesma de dez anos atrás, assim como eu quase já não me reconheço. Mas caminhamos juntos, construindo laços neste território de encontros que é o Xingu.


* Daniel Massa é poeta e professor, trabalhando nas áreas de literatura e língua portuguesa em escolas do Rio de Janeiro. É um dos idealizadores e responsáveis pela execução da Biblioteca Indígena do Xingu. Seu livro de estreia Não Tem Nome de Quê foi publicado pela editora carioca BR75, em 2021. Lançou a plaquete De repente Vale Mesmo a Pena é ir a Pé, pelo selo independente Lluvia Livro. Recentemente, publicou pela editora 7Letras o romance em versos Fio D’água, ambientado no Rio Negro, desde São Gabriel da Cachoeira até Manaus.

Tags: Bibliotecas
[28/09/2023 11:10:00]