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De pires na mão, com José J. Veiga
PublishNews, Suzana Vargas, 24/11/2021
Em um jantar, o escritor J. J. Veiga fez uma pergunta daquelas pra Suzana Vargas e ela respondeu sem pensar muito. Confira a saia justa na oitava crônica da série 'Escrever para lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram'

Essa é uma memória envergonhada, as lições dela acontecem pelo avesso. E elas me levam até os idos de 1996, quando eu estava abrindo/inaugurando a Estação das Letras, da qual José J. Veiga foi escritor fundador, junto com outros como Cleonice Berardinelli, Antônio Torres, Ivan Junqueira e tantos. Pois bem: a lembrança envergonhada me conduz até a mesa do restaurante La Mole onde tinha ido jantar com J.J Veiga logo após sua participação no projeto A Arte da Leitura, na Biblioteca Popular Machado de Assis. Na época, era praxe levarmos os autores para jantar como uma gentileza da organização. Eram tempos difíceis para a recém-inaugurada Estação e eu costumava me queixar com algumas pessoas próximas acerca da precariedade financeira do empreendimento. Mas voltemos ao restaurante, onde muito tranquilinho esse fantástico escritor (sem trocadilhos) jantava comigo e com sua editora.

Tranquilidade e doçura seriam as palavras mais adequadas para descrevê-lo em sua estatura baixa, magreza e calvície. Timidez seria outro adjetivo apropriado e quase inacreditável para quem, como ele, havia criado, ousadamente, tantos universos simbólicos em seus muitos romances e contos. No jantar, comentávamos sobre sua roda de leitura com imensa plateia interagindo e sobre o sucesso da noite. Foi quando ele, gentilmente, educadamente, resolveu me fazer a pergunta proibida “E como vai a Estação, Suzana?”.

A indagação bateu na trave e veio rolando perigosa, em direção a mim. Tanto assunto interessante para falar e ele vinha com esse... Afinal, eu estava diante de um gigante (apesar da estatura), um dos mais conhecidos, festejados, traduzidos e estudados autores do país. Quem à época não tinha ouvido falar dos Cavalinhos de Platiplanto, seu best seller e carro-chefe desde o final da década de 1950? E quando, afinal, nos sentávamos para conversar, ele, meu ídolo, fazia uma pergunta tão íntima quase como se perguntasse segredos de alcova. Minha resposta ainda não vou contar por pejo, vergonha mesmo, da grossa.

José J. Veiga não era um amigo íntimo, nem um desses escritores a respeito dos quais ouvíamos notícias a toda hora. Dificilmente o encontraríamos em festas ou em círculos literários. Era pacato e escondia-se num pequeno apartamento de paredes azuis (se não me falha a memória) na Glória, onde estive uma única vez, curiosa por saber onde morava e como vivia o autor que havia se transformado em ícone da literatura fantástica no Brasil. Considerando desse ponto de vista, os adjetivos para seus livros muito pouco importariam, pois suas histórias possuíam linhas simples e uma comunicação imediata. Seus argumentos giravam em torno de fatos insólitos sempre associados ao cotidiano de uma família, de uma cidade onde os habitantes, em geral pessoas simples, estão, por assim dizer habituados aos acontecimentos estranhos por ele engendrados. Esse, por exemplo, é o caso da novela A hora dos ruminantes, livro-síntese de sua obra onde uma inusitada aliança entre homens e bichos explora/invade uma pacata cidade do interior. Isso tudo em tempos de uma literatura combativamente realista. Esse era seu mote: unir universos simbólicos e inconciliáveis num mundo de sertanejos e lavradores, gente comum, de fala pitoresca e ambições modestas.

Nas ocasiões em que estivemos próximos, eu não ouvi grandes conselhos dele (longe disso). Gostava de cerveja e de massas. E não gostava de falar sobre si: milagrosamente queria ouvir. E eu, ali, cheia de perguntas... queria indagar, por exemplo, de onde ele tirava tantas histórias pelas quais nós, leitores, éramos tomados de assalto com suas situações desesperadas e desesperadoras, sem perder a verossimilhança. Como era capaz de abrir a Caixa de Pandora de uma cidade, um lugar quando tudo o que descrevia eram fatos e ações pacatas que rapidamente evoluíam para terror, opressão e espanto?

Quando entrei na sua casa naquela única vez, me espantei de encontrar uma simplicidade de móveis e livros atrás desse criador de inusitados argumentos. Sua esposa preparando um café que tomamos sentados na cozinha denunciava que ali se vivia um cotidiano sem grandes alterações e imprevisibilidades. Nada de mais. Nem de menos.

Entre observações breves, ele dizia que esperava que sua obra causasse algum desassossego no leitor. Queria que seu leitor pudesse perceber que facilmente se pode passar de pessoa a objeto quando o arbítrio existe.

Até aí as declarações eram razoáveis, quase comuns, mas via-se que não quando, ao lê-lo, nos deparávamos com seus textos líricos, delicados e absurdos, assemelhando-se a apólogos, como alguns de seus críticos falavam. Fez jus a três prêmios Jabutis e a muitos outros, junto a inúmeras traduções no exterior. Nada mal para um homem que tinha em seu currículo a profissão de caixeiro nas lojas Pernambucanas, escriturário e um diploma de Direito. Muito depois viria a escrever em grandes jornais e revistas do país.

Antes desse jantar fatídico (para mim), meu convívio com sua obra havia começado no vestibular com Os cavalinhos e, bem mais tarde, evoluído para romances como Sombras de Reis Barbudos e um livro de contos que merece urgentemente uma releitura para os dias atuais: Os pecados da tribo que pode ser lido como romance ou como livro de contos, num jogo a que somente Cortázar faria jus. Desse volume reproduzo o conto Fazemos o que nos mandam. Qualquer semelhança antecipada com Garcia Márquez, não será mera coincidência uma vez que ambos estrearam quase na mesma época.

Eu sou/era leitora de sua obra, mas ali, no restaurante, ao ser indagada pela situação do espaço recém-aberto com sua bênção, me reduzi a um muro de lamentações. Ao tentar responder como andava a empreitada com oficinas de criação literária (grande novidade do momento), enveredei num corredor de queixas. Entre outras quase obscenidades, disse que era tudo muito difícil, que não havia quase alunos, que o espaço mal se pagava, enfim, coisas que ele até conhecia pois estivera lá como professor.

Foram tantas as lamúrias que, ao final do jantar (e depois de até já havermos mudado de assunto), sofri o maior constrangimento que um coordenador de projetos poderia ter junto a seu convidado. Feito o pagamento (não sem antes pedir nota fiscal etc.) e antes de nos levantarmos para ir embora, meu ilustre amigo me pediu para esperar um pouco. Sentados ficamos e ele me disse: “Suzana, admiro muito seu trabalho, sua coragem. Por isso quero colaborar com a Estação. Peço que vc aceite esse cheque que vocês me deram em pagamento como uma colaboração para o espaço”.

Silêncio. Vergonha total. Não sei como explicar o chão se abrindo sob meus pés quase literalmente. Estava diante de um dos nossos maiores autores estendendo seu pagamento pela palestra feita para colaborar com um projeto pessoal? Ah, isso é que não.... Eu parecia estar dentro de um de seus insólitos e absurdos enredos, enredada nas próprias palavras. Se aceitasse com tranquilidade, bastaria pular para dentro de um de seus livros. Recusei veementemente e ele tornou a oferecer com mais veemência ainda. Continuei a recusar até que consegui vencê-lo pelo cansaço. Mas a lição ficou inscrita para sempre na minha testa. E qual seria? A da discrição quando nossas apostas são pessoais? A de conter minhas lamúrias com convidados? Talvez não. Mas quem sabe buscar no enredo linear daquele jantar uma outra resposta, talvez mais generosa, menos perturbadora diante da sensibilidade do meu convidado. De todo o modo o susto do vexame me ensinou a não enveredar por um corredor de queixas sobre um assunto que somente dizia respeito a mim

Mais tarde, ficamos mais próximos. E mais uma vez foi a poesia que me salvou do vexame. Trocamos livros e cartas num tempo ainda de correios. Mas sua presença entre sonho, delírio e espanto atesta o ser humano de sensibilidade com quem tive a sorte de conviver, de cuja obra Mário da Silva Brito, esse grande crítico e historiador literário se referiu como sendo puro jogo da inteligência e festa para o espírito. Se pudesse voltar no tempo, teria reeditado a noite? Sim, reproduziria cada minuto, mas talvez tivesse pulado perguntas e omitido as respostas que me colocaram de pires na mão diante de um dos maiores escritores que nosso Brasil já teve.


Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.

Tags: J. J. Veiga
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