Em uma eventual visita à Inglaterra, sem nenhum conhecido na terra de Shakespeare, a melhor forma de fazer rapidamente uma dezena de amigos seria caminhar por alguma rua importante ladeado por um membro da realeza. Em minutos, certamente seriam tantos cumprimentos e apresentações que nos sentiríamos nativos. Em Nova Iorque, creio que o melhor seria passear ao lado da Madonna. E em Sharjah? Bem, em Sharjah basta uma volta pelo pavilhão de expositores ao lado da Fernanda Dantas, do Brazilian Publishers.
Ela me apresentou dois editores maravilhosos, Sherif e Ranya Bakr, da editora Al Arabi, sediada no Cairo. São eles quem publicam Raphael Montes, Adriana Lisboa e Tatiana Salem Levy na terra dos faraós. Adoram livros de criminologia e futebol. Seus trabalhos são bem impressos e trazem uma bandeirinha do Brasil na lombada, que marca nossa identidade literária por lá. Lindo.
Já conheceram alguém com quem a amizade bate de pronto? Foi assim entre mim, Sherif e Ranya. Com dez minutos de conversa, revelamos segredos comerciais uns para os outros, ajudando-nos. Com vinte, me convidaram para sentar na pilha de livros e trocamos dicas de traduções que acreditamos serem boas apostas para o ano vindouro. Não havia passado meia hora quando quiseram sair para um café, e analisavam quem iria primeiro. Eu disse: Podem ir juntos. Eu cuido da loja! Eles toparam e foram. Fiquei cuidando do estande por eletrizantes vinte minutos, torcendo para aparecer um freguês e eu vender um livro. Não apareceu, mas daqui uns anos vou aumentar essa história e dizer que vendi todo o estoque.
O passeio no deserto começou com jipes quatro por quatro correndo pelas dunas, subindo, descendo, derrapando numa vista muito bonita, mas que deixou enjoado. Brasileño mareado, disseram os argentinos. Fiquei com medo de vomitar neles e estragar as amizades recém-firmadas.
No alto das dunas, os carros pararam para assistirmos ao pôr do sol, e é exatamente como nos filmes: a enorme bola alaranjada sumindo lentamente no horizonte. Tirei poucas fotos: observei muito. Poderia ser um momento de muita contemplação e filosofia, mas ficamos fazendo piada, dizendo que éramos a Publish Hood, a fraternidade periférica do mundo editorial, a turma do bairro.
De volta aos automóveis, conduziram-nos dunas abaixo para uma grande área iluminada com tochas — dezenas! — e fogueiras que nos aqueceriam para o jantar. A surpresa foram quatro telescópios potentes com astrônomos prontos para nos mostrarem os planetas. Vi Vênus, Júpiter e Saturno. Começamos a ficar emocionados: uma agente italiana parou de tentar me vender a biografia não-autorizada da J.K. Rolling para dizer que éramos todos feitos de estrelas e que, mortos, voltaríamos para lá. Um editor mexicano foi para um canto sozinho e fez promessas em voz alta, falando com os Céus. Eu pensei na comida e que aquele tanto de areia nunca mais sairia dos meus tênis: peço desculpas aos que esperavam grandes filosofias. Daqui uns anos, aumento essa história e conto que ali tive uma revelação.
Enfim, serviram o jantar. Comemos sentados no chão, sobre tapetes. Na hora da sobremesa, a sheikha Bodour sentou por um momento conosco para uma conversa informal. Fez isso com todos, como manda a educação real. Depois, o discurso de Sua Alteza, agradecimentos da Laura, fotos oficiais, os parabéns para uma editora nigeriana que aniversariava, um pouco de música.
Eram quase dez da noite e, cansado, estava sentado no chão enquanto os outros dançavam. Jogava conversa fora com um editor da Iugoslávia, que contava como um amigo ficou rico nos Estados Unidos vendendo inseticida. A Publish Hood conversando sobre como “fazer a América”. Foi neste momento que os fotógrafos de Sua Alteza começaram a passar por nós pedindo gentil e educadamente que, daquele momento em diante, não tirássemos fotos com o celular. Só entendi o motivo quando Sua Majestade se jogou na pista, encantando a todos, sacudindo o esqueleto ao som de Bob Marley.
Passei os olhos ao redor para bem registrar o surreal daquilo. Vejam a cena comigo: o deserto. Para qualquer lado que se olhasse, a absoluta escuridão. O céu de um azul profundo, com poucas estrelas à vista, mas com os planetas bem marcados. A areia ancestral, onde pisaram os beduínos, por onde correram as caravanas. E, entre os planetas e a areia, Sua Alteza e Laura dançando juntas, levadas pela voz roupa de Bob Marley, Won't you help to sing These songs of freedom? 'Cause all I ever had Redemption songs All I ever had Redemption songs These songs of freedom Songs of freedom...
Há uma palavra em árabe para expressar o que eu vivi ali, um termo que não tem tradução exata em nenhum outro idioma. A palavra contempla corridas pelas dunas, tochas iluminando o deserto, uma sheikha dançando reggae, planetas cravejando o céu, um editor mexicano fazendo promessas às estrelas, as histórias engraçadas do editor egipcio, e telescópios, e a Publish Hood, e a amizade florescente, e o desejo de voltar sempre. Esta palavra é Sharjah.
Isto é Sharjah.
* Leonardo Garzaro é jornalista, escritor e editor da Rua do Sabão. À parte isso, tem em si todos os sonhos do mundo.