Em Frankfurt, a Noruega liderou pelo exemplo
PublishNews, Leonardo Pinto Silva*, 21/10/2019
Em artigo, o tradutor Leonardo Silva discorre sobre o sistema literário norueguês, suas singularidades, e sobre a atuação do país como homenageado da Feira de Frankfurt 2019

Depois de cinco anos de planejamento minucioso e um investimento declarado de 55 milhões de coroas (25 milhões de reais), a Noruega, reafirmou seu posto de potência literária mundial em Frankfurt. O país homenageado na feira deste ano demonstrou, já na solenidade de abertura, por que desenvolvimento econômico, igualdade social e vitalidade democrática estão diretamente relacionados ao nível cultural de um povo.

Escalada para discursar ao lado de ninguém menos que Karl Ove Knausgård, a escritora Erika Fatland dirigiu-se diretamente à primeira-ministra norueguesa, Erna Solberg: “Até na minha Noruega, que está longe de ser uma ditadura, uma produção teatral foi recentemente criticada por ser problemática para certos políticos. Nada disso, cara primeira-ministra: suas declarações é que são problemáticas”.

Numa sociedade fleumática e avessa ao improviso, o episódio poderia ter outros desdobramentos. Estavam ali a realeza norueguesa, autoridades de vários países e a elite da indústria literária mundial. Mas não, foi jogo jogado. Nas democracias, é assim que a liberdade de expressão funciona, ou deveria funcionar. Os noruegueses costumam liderar pelo exemplo — deixando a ternura de lado e sendo pragmáticos demais para os padrões brasileiros, é verdade, mas raramente omitindo o que é preciso ser dito.

O sistema literário norueguês é singular a partir do controle acionário das livrarias pelas editoras. Combina isenção tributária, preço fixo e aquisição governamental, celebra acordos coletivos abrangentes e oferece canais de financiamento para autores de todos os gêneros. Aliado a isso, uma ativa política de subsídios garante a tradução, promoção e até produção gráfica de títulos noruegueses pelo mundo. Esqueça bacalhau e petróleo. O produto mais globalizado e influente da sua pauta de exportações é a literatura.

Induzido pelo Estado, esse sistema literário reflete e anima

um país cuja média de leitura per capita é de 15 livros/ano. Criada em 1978 para coordená-lo, a Norla (Norwegian Literature Abroad) é uma agência de apenas 10 funcionários que já subsidiou a tradução de 5.500 títulos para quase 70 idiomas diferentes. Nada mal para um país com menos de 5 milhões de habitantes, cujo território em boa parte não passa de rochas e gelo.

Nada disso bastaria não fosse um fator essencial: a qualidade literária de tradição secular. Não por acaso, Erika Fatland citou em seu discurso “Um inimigo do povo”, clássico de Henrik Ibsen escrito em 1882. Fez questão também de homenagear o trabalho “heroico” dos tradutores que ampliam o alcance dessa literatura. Dar visibilidade aos tradutores, aliás, é praxe da casa. Em Frankfurt, os autores noruegueses eram sabatinados no palco pelos seus respectivos tradutores alemães.

Uma vez que livros não são objetos estranhos à sua elite financeira, os noruegueses também são bons de business. Não vieram à Alemanha só a passeio. Mobilizaram um time invejável de talentos — desde medalhões como Jostein Gaarder, Jo Nesbø e uma vintena de grandes nomes pouco conhecidos no Brasil até poetas da minoria sámi, cuja voz raramente é ouvida além do Círculo Polar Ártico — e aproveitaram a vitrina para fazer valer o investimento. Trouxeram até um trem literário, capitaneado pela princesa Mette-Marit. A exposição “Edvard Munch visto por K.O. Knausgård” é um dos inúmeros eventos que vêm ditando a pauta da agenda cultural alemã. A vasta programação do pavilhão norueguês foi concebida para despertar no visitante curiosidade e desejo de ler aqueles autores e viajar para experimentar aquela realidade de perto. Não por acaso, a cidade norueguesa de Lillehammer será a capital literária europeia em 2020.

Liderando pelo exemplo, a Noruega ofereceu na Feira de Frankfurt um mar de oportunidades. Será que os brasileiros perceberam?

******

Encerro este artigo com uma breve digressão. Viajar ensina que o mundo tem olhos. E os olhos do mundo estão mais que nunca voltados para o Brasil. Desde 1988, tenho vindo ao exterior, sobretudo à Noruega, em intervalos regulares. Cidadão brasileiro, costumava ser recebido calorosamente, de braços abertos e sorriso no rosto — às vezes até com certa condescendência diante das nossas mazelas. Foi-se o tempo. Do motorista do táxi (afegão) ao autor mundialmente consagrado, a reação que testemunhei em Frankfurt agora foi um misto de perplexidade, desconsolo e reprovação pelo país que nos transformamos. Uma lástima constatar que hoje lideramos pelo contraexemplo.


* Leonardo Pinto Silva é jornalista e tradutor literário, majoritariamente do norueguês, idioma do qual já verteu mais de 30 títulos (O mundo de Sofia, Karius e Baktus, Hedda Gabler) para o português. Sua mais recente tradução, a ser publicada pela Editora Ayiné, é O livro do mar, de Morten Strøksnes. Leonardo viajou a Frankfurt a convite da Real Embaixada da Noruega no Brasil e da Norla.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do PublishNews.

[21/10/2019 04:00:00]